Textos

Oficina Literária Metamorfose (2022)

Bom Apetite, Príncipe

Joana guardou a caixa vazia no bolso do avental, colocou um dente de alho descascado no pilão e continuou a pilar. O marido dizia que feijão bom tinha que estar misturado com um alho cru e que, além disso, alho cru fazia bem pra saúde. Ela não. Ela evitava alho. Reclamava do gosto, do odor e do cheiro que ficava na mão. No começo, havia experimentado a mistura e aprovado, mas, com o passar do tempo, terminara por voltar a comer o seu feijão sem o tal bolbo.

Desligou o fogo do feijão e pegou um dos pratos brancos do armário. Quatro colheres de arroz, quatro colheres de feijão sobre o arroz, raspou todo o conteúdo do pilão em cima do feijão e misturou tudo, criando uma massa deforme e fumegante de pasto. O cheiro e a imagem lhe desenharam uma careta na cara. Um bife acebolado e, ao lado do bife, farofa. Ela segurou o prato com as duas mãos e saiu da cozinha, após apagar a luz.

Carvalho estava sentado à mesa na frente da televisão. O time pelo qual estava torcendo perdia. E nem piscou quando a mulher se aproximou, colocou o prato entre os dois talheres que já estavam na mesa e lhe disse "bom apetite". A única coisa que fez foi dizer-lhe para que trouxesse outra cerveja.

O telefone tocou, e ela deu dois passos na direção do aparelho, mas ali ficou. Ele havia virado o rosto na direção dela, e ela se congelou. O som era estridente. Eles permaneceram se encarando durante algum tempo até que o telefone parou de tocar. Ele voltou a olhar para a televisão, e ela, depois de uma pausa, foi para a cozinha.

Uma vez a nova garrafa de cerveja aberta nas mãos do marido, Joana foi até o banheiro, fechou a porta e suspirou. Ela se olhou no espelho e passou o indicador em cima do inchaço que tinha aparecido no olho. Reparou pela primeira vez que o pulso esquerdo estava com algumas marcas de dedos. Então, com uma escova de cabelo, penteou a juba, colocou um pouco de perfume no pescoço e para terminar passou um batom na boca. Os lábios ficaram vermelhos.

Quando Joana voltou para a sala, o marido já tinha quase acabado de comer. Ela pegou um porta-retratos que estava no chão e colocou-o de volta na biblioteca. Ela também se sentou à mesa, olhou para o prato e perguntou ao marido se este queria sobremesa. Ele mastigou a última garfada, terminou a cerveja, bocejou e disse que não, que estava cansado e com dor de cabeça, que aquele time era uma merda e que iria para cama mais cedo. E assim foi, sem dizer mais nenhuma palavra, desaparecendo na escuridão do único quarto da casa, sem mesmo passar pelo banheiro.

Ela olhou para os lados, levantou-se e desligou a televisão. Ela levou o prato e a garrafa de cerveja para a cozinha e acendeu de novo a luz. Colocou a garrafa numa bolsa cheia de cervejas vazias, colocou o prato e os talheres que o marido havia utilizado na máquina de lavar e jogou a caixa vazia no lixo. Tarja preta. Ela, então, olhou para o céu através da janela, viu que a noite estava estrelada e apoiou-se na pia. Joana estava sorrindo.

ArteCult (2021)

Bossa Nova

Bom mesmo era Legião Urbana. Também tinha Cazuza e Raul Seixas, mas Renato Russo… Renato Russo foi O poeta da minha geração.

Eu estive no show do Jockey Club! Bebi todas e acabei agarrado com uma garota que apareceu no meu lado.

Mas não é para falar nem do Rock brasileiro, nem da minha juventude que estou aqui. Hoje estou aqui para falar da Bossa Nova. Isso mesmo. Aquele estilo de música que foi criado nos anos cinquenta e do qual os estrangeiros gostam mais do que os brasileiros. Aliás, eu mesmo só comecei a gostar da Bossa Nova quando também virei estrangeiro.

Eu prefiro ser… essa Metamorfose Ambulante…

Lembram-se daquela história do alquimista? Pois é. É exatamente isso. Temos de viajar pro Egito pra descobrir que o tesouro está escondido no quintal da nossa casa.

Infelizmente, no Brasil, a Bossa Nova é coisa para poucos. Bom mesmo no país do carnaval é futebol, carnaval (claro), “reality show” e polaridade. Estou longe. Mas longe mesmo. Pra vocês terem noção de como estou longe, vou contar dois segredinhos: não tenho a menor ideia de quem seja Alok e nunca tinha ouvido falar daquela cantora que saiu do BBB por causa de uns comentários preconceituosos até que ela tivesse virado primeira página de um dos jornais do país. É assim. Às vezes pensamos que estamos no centro do mundo, mas basta olharmos um pouco com os olhos dos outros para descobrimos que não é nada disso. Nossas crenças são apenas enfeites coloridos de uma festa que um dia vai acabar. Aqui mesmo na Suíça tem uns caras super famosos dos quais, tenho certeza, vocês nunca ouviram ou ouvirão falar. Mas a Bossa Nova? Cara, a Bossa Nossa está na enciclopédia Larousse (conhece?)! Será eterna enquanto durar a humanidade e durará com certeza mais do que o nosso amor. É prima do blues e do jazz, e, se tivessem deixado, os escravos que colhiam algodão no Delta do Mississipi teriam ido à África só pra aprender capoeira. Pouca coisa não.

Não digo que o brasileiro tenha que gostar desse estilo de música, mas, ao menos, o conhecer e o valorizar. É um tesouro mundial. Aliás, a televisão brasileira, essa poderosa arma que tem sido capaz de colocar um presidente no poder (e tirá-lo), tinha, por obrigação, ajudar a evoluir a cultura do nosso povo, para, quem sabe, ajudar-nos até mesmo a criar um novo estilo de música. Por que não? Uma coisa o brasileiro é: criativo, mas ninguém é capaz de voar se ficar olhando pro chão.

Por sinal, por que não criam um novo Festival da Canção no Brasil? Um festival que volte a premiar a qualidade de uma música e não a popularidade da mesma? Um festival que volte a premiar os acordes com nonas e décimas terceiras e que não venha com histórias de enviar os cantores para a frente de um paredão? Que premie músicas como Sabiá, canção de Chico Buarque e Tom Jobim? Um festival que não receba grana por cada voto computado via telefone.

Assim, por favor, quando terminarem de ler este texto, façam um favor pelo nosso país. Coloquem para tocar o álbum “Chega de Saudade” do João Gilberto no seu Spotify ou no seu Deezer – conhecendo o álbum ou não – e voltem a imaginar um futuro melhor para o Brasil, onde seremos capazes de reencontrar nossos valores perdidos e criar novos e verdadeiros valores.

Hó Bá Lá Lá.

Oficina Literária da escritora Adriana Lisboa (2017)

Basquiat

No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era quadrada, branca e vazia; e havia um estúdio sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das tintas. Disse Deus: haja cor. E fez-se cor. Viu Deus que a cor era boa; e fez separação entre as cores com um prisma. E Deus me chamou de mulher, e você de homem. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.

Por que ele começou com você? – O homem perguntou.

Porque eu estava do lado esquerdo da tela – a mulher respondeu.

Você ainda não estava aí. O lado esquerdo estava vazio, e ele resolveu pintá-la antes de mim.

Eu já estava aqui muito antes do início. Ele me imaginara primeiro antes de ter começado a nos pintar, não você.

Vocês estão tendo um caso!

Jean Basquiat largou o garrote no chão e fechou os olhos. Não conseguiria segurar mais nenhuma cor. Não poderia nem mais separar a obra do criador.

Como havia chegado ali? Quem um dia teria imaginado que aquele bebê criado com tanto amor um dia teria sua foto estampada dentro de uma Larousse? Quem havia despejado tanta tinta sobre sua cabeça naquela pia batismal? Substantivos e adjetivos deram lugar a números, e sua própria vida foi experimentada ao extremo.

"Warhol."

Como havia chegado ali? Quem o havia chicoteado com um pincel durante a sua infância? Quando havia perdido, enfim, o medo da claridade?

Basquiat se sentou na beirada do sofá, abriu os olhos e contemplou o infinito.

Prisma. Tudo.

O homem e a mulher pararam de discutir e olharam para ele, à espera. Será que ele os daria, afinal, por terminados? Era um exercício constante em suas vidas, imaginar se estavam ou não prontos.

Ao menos já se consideravam belos.

Dou outro gole no vinho e fico com vontade de apagar este texto. Não tenho certeza de que esteja bom. Talvez seja melhor começar do zero. Talvez seja melhor escrever sobre um quadro da Norah Borges.

Não faça isso! – O homem grita.

Jean Basquiat arregala os olhos e olha para seus dois personagens.

Quem disse isso? – Ele pergunta, com voz melosa.

Eu! – O homem responde.

Que isso... – Basquiat diz.

Queira me desculpar. Não estava a falar com você, estava a falar com o escritor.

Como? – Paro de digitar e levanto as mãos.

Você não pode fazer isso! – O homem insiste, e Basquiat e a mulher me encararam também.

Dou outro gole no meu vinho e olho para os lados.

“Que porra é essa. Claro que posso.”

Não! Não pode! – Desta vez foi a mulher a gritar.

Então eles podem ler meus pensamentos? – Murmuro.

Claro que podemos!

Solto um suspiro.

Vamos deixar uma coisa clara – falo entre os dentes. – O texto é meu, e faço com ele o que quiser. Aconselho-os a se comportarem. Esta discussão irá apenas precipitar as coisas.

Não. Façamos o seguinte. Você escolhe. Sim. Você. Cabe a você decidir se este texto deve ou não existir. Digo: decidir se ele deve continuar ou não a ser lido, já que escrito ele já foi e sobre isso não a nada que possa fazer.

(pausa para que você decida se irá ou não continuar a ler este texto)

Excelente! – Grito e as pessoas do restaurante olham para mim – Este texto não deve estar assim tão mal. Afinal, você resolveu continuá-lo, talvez curioso com seu desfecho.

Com a mão esquerda, Jean Basquiat apertou duas vezes uma bola de tênis invisível, e o orgasmo chegou como um trem bala. Demasiado conhecimento. A solidão daquele estúdio lhe contou todas as regras do universo, cada detalhe, até a exaustão.

Sua cabeça se inclinou para frente, e ele repousou o corpo no chão, morto.

Até os anjos costumam sentir vertigens diante do infinito.

Milk Shake

Paro na frente do liquidificador e abro uma garrafa de Puccini. Esse será o meu leite. Nasci trágico. Sou assim. Também gosto de Aranjuez, Rachmaninov e Pink Floyd, mas Puccini? Giacomo Puccini? “Nessun Dorma!”, “Un Bel Di Vedremo” e “Recondita Armonia” são, para mim, como o ponto de fuga de Michelangelo, Pollock e Shakespeare.

Já agora uma latinha de Hemingway – ele me inspirou partir do Brasil – e uma dose de conhaque, para não me esquecer de que comecei a beber, regularmente, aos 13.

Cedo demais? Eu consegui fazer sexo pela primeira vez antes de ter conseguido beijar uma garota na boca, o que me aconteceu apenas aos 14. Aliás, aos 14 também fui expulso do Colégio Zaccaria, por causa de uma redação que escrevera.

Eles ainda devem tê-la arquivada.

Cem mililitros de viagem, uma xícara de cigano, três gemas de desenhista, vinte gramas de preguiça, dois dentes de natação, uma colher de kung-fu e mais viagens.

Adoro viajar. Adoro viajar e me sentar numa sombra, pronto para escrever. Adoro dormir em hotéis, tentar me comunicar no idioma de um lugar e andar de trem. Um homem sobre o trem.

Adoro comer também. Adoro comida italiana, japonesa, portuguesa e francesa. Adoro pão de queijo, acarajé e esfirra de queijo.

Vou até o armário e pego a caixa de temperos. Não economizo. Seis pitadas de outras línguas, cinco corações quebrados, quatro seguranças sociais, três anos de faculdade, dois instrumentos musicais e um Caminho de Santiago.

Um serviço militar, ralado.

Uma dose de egoísmo, filantropismo, timidez, extroversão, otimismo, depressão, humildade e presunção; depende do momento.

Despejo alguns grãos de amizade e me apresso para corrigir o erro. Perdi contato com alguns, irritei-me com outros e decepcionei vários. Deixo apenas as sementes que tiveram tempo de crescer.

Um caldo difícil com meu pai e, certo, uma folha de Deus. Uma vez tive um déjà vu fenomenal em Londres e não fiquei surpreso.

Liquidifico um pouco para homogeneizar a bebida e provo o resultado. Não estou satisfeito.

Tento imaginar aquilo que falta.

O ambiente. Exato. Eu não sou apenas eu. Eu sou tudo o que me cerca e o que me cercou. Sou onde nasci, com quem cresci e o que vejo na televisão, mesmo sabendo que somos – quase sempre? – manipulados. Espremo um pouco de tudo isso. Sou a educação que tive e também as decisões que tomei. Sou os valores que construí e os valores das outras pessoas. Sou uma longa estrada. Sou o olhar perdido, os dez colégios em três anos, os trinta empregos, a dúvida, a certeza, o precipício e a asa. Sou o desejo de fazer diferente. Sou minha mãe, meu irmão e meu sobrinho. Sou a família que tenho. A família que esteve aqui, que tem estado e que estará, mesmo sem a minha presença. Tenho sangue espanhol, italiano, português e libanês. Trinta pessoas participavam do meu Natal no Brasil, estou num casamento feliz há dez anos e tenho ao meu lado um filho maravilhoso, Tiziano, que trouxe o amor encarnado para a minha vida. Ele é o meu desejo de um futuro melhor. Ele sou eu.

Amor. Eis o ingrediente que faltava. Amor e algumas gotas de Azul-Corvo, o que dará o perfume à minha bebida.

Agora sim: perfeito.

Tertúlia (2012-2017)

PQD

Como chegar a ser realmente livre?

O altímetro confirma a altitude necessária. Nunca estive tão alto. O instrutor abre a porta do Cesna, e o silêncio é preenchido pelo ronco surdo do motor e pelo fustigar do vento. Estou prestes a dar o meu primeiro salto de paraquedas, em Évora, no Alentejo de Portugal. O avião está a três mil e quinhentos pés de altura e a sete mil e quinhentos quilômetros do Rio de Janeiro, onde nasci.

Estou trabalhando há mais de três anos em Lisboa. Programador de computadores. Participara da conversão do Escudo para o Euro e da adaptação de sistemas informáticos para o ano dois mil, um dos maiores blefes da história e um dos responsáveis por aquela nova migração em massa.

Quase todos os estabelecimentos comerciais portugueses passaram a ter um brasileiro, assim como nas obras, nos escritórios; um povo que se mostrou fácil de distinguir, seja pelas roupas, pelos traços faciais, ou pela maneira de comportar-se – os lusitanos não costumam permanecer por mais de duas horas num telefone público, ainda mais de chinelos.

Eu havia sido apenas mais um no meio daquele novo êxodo no qual o Brasil redescobriu Portugal, e Portugal redefiniu o Brasil.

Primeiro, eles haviam cultivado – coloque novela nisso – uma visão quase perfeita de seus parentes do ultramar, na qual todas as mulheres seriam belas e os rapazes educados. Além disso, nas casas brasileiras, um porta-gelo reabastecido estaria sempre esperando o chefe da família voltar (de um trabalho longe da realidade do salário mínimo verde-amarelo).

Enfim, os "brazucas" – ver "portuga", brasileirismo depreciativo – demonstraram com o próprio exemplo a verdadeira face do Cabral: assim como em qualquer país do mundo, um número ínfimo de seus habitantes é capa de revista e nem todos pensam que batucar na mesa não é aconselhável.

O que é que eu estou fazendo aqui?

Outra característica pela qual ficamos conhecidos: nossas demasiadas saudades de casa.

Subimos em espiral para não perder o aeródromo de vista, e, como eu fui o último a entrar no avião, serei o primeiro a sair, com uma coreografia a ser iniciada com um sinal.

Deve ser esse.

O instrutor abaixou o polegar.

Coloco o pé esquerdo para o lado, e um tapa no meu calcanhar recorda-me do início correto. Reformulação dos movimentos. Levo o pé para fora, desta vez junto da mão esquerda e sinto um tranco ainda mais forte; o vento é a força da natureza que não irá parar por um segundo, sequer por mim, para que eu salte.

Minha perna, lutando contra uma corrente terrível e invisível, pisa no trem de pouso, enquanto minha mão alcança o suporte frio da asa. A seguir, é a vez do meu braço e pé direitos, para eu entrar num ambiente que jamais havia entrado antes, no meio do céu e a tocar diretamente o ar.

Um mundo irreal desfila. Mal consigo olhar para frente, por causa do mesmo vento, e o chão se comunica comigo através de pequenos quadrados desenhados; casas e carros do tamanho de formigas, pintura retorcida dentro de uma mente excitada.

Com as botas quase sobre as rodas, as mãos segurando o suporte da asa direita, dou curtos passos laterais, afastando-me da porta.

Eu devo lutar contra o medo.

Solidão. Chegara a um país onde não conhecia ninguém nem mesmo o idioma – rezara por um tradutor durante a minha primeira semana de trabalho – mas decidira persistir. No mesmo emprego de sempre, ainda acredito ser capaz de sentir a minha vida um pouco mais útil, bastante diversa dos anos de esbórnia que ficaram para trás. Tenho buscado, na distância, um crescimento artístico e, quiçá, encontrar minha humanidade, aquela escondida e ignorada dentro de cada um de nós. Sonho retornar ao Rio, sem dúvida alguma, mas somente depois de humanizar meus hábitos e escrever meu livro. E, já que eu partira para longe das pessoas que amo, abrindo mão de preciosos anos de convivência com elas, prefiro continuar apostando alto.

Calma.

Olho para minhas mãos e medito sobre qual é a maneira mais coerente para pensar neste momento. Como a partir de um pensamento lógico não é possível que eu esteja aqui, tudo deve ser uma ilusão que acabará a qualquer instante – na cama, no ar, no chão. Devo duvidar que estou acordado e acreditar que tudo não passa de uma fantasia, de uma rápida e profunda quimera; uma nova interpretação das coisas que será capaz de transformar todo este perigo em algo tão etéreo quanto os próprios sonhos. É isso. Eu estou dormindo, e tudo na vida, como este instante, não é real.

Sete dias depois de pousar na Santa Terrinha, quase desistira e voltara para casa; para alguém habituado à presença de parentes, amigos e lugares conhecidos, ficar mais de uma semana longe de tudo e de todos pode levar-nos a um ato de desespero. Tivera, então, de inculcar metas na minha cabeça e arranjar uma força sonâmbula para continuar por escassos seis meses, tempo que seria suficiente para que, ao menos, minha mãe conhecesse a Europa; ela merecia mais do que isso.

Os seis meses distanciaram-se, minha mãe já veio me visitar duas vezes, e eu continuo seguindo adiante.

"Quem achar a sua vida a perderá e quem perder sua vida por amor de mim a encontrará." Jesus passou em minha mente assim como os primeiros cristãos; assassinados, que sorriam e cantavam, enquanto eram devorados por leões. Penso no casamento, no trabalho, no egoísmo, nos vícios e nas coisas pelas quais lutamos e que dão algum significado à nossa existência. Penso nas contas bancárias, nas roupas de marca, nos carros e em vários símbolos da sociedade moderna. Tenho negado os ciclos viciosos do mundo e buscado aquele algo mais, pulando de braços abertos para fora do conformismo e dizendo um sonoro "não", como se pudesse gritar para Deus que eu não compactuo com toda esta lenta evolução.

Infelizmente, eu tenho descoberto que a distinção que conseguimos com aquilo que compramos se esta propagando, de maneira igual, mundo afora.

Passamos a ser ratos de laboratórios. Transformaram-nos em frutos duma sociedade de consumo e classificaram-nos como um poder de compra. Tamanha fora a luz do Iluminismo que essa mesma luz nos cegou.

Eu olho para a esquerda e vejo um novo gesto do instrutor, o que significa que, a partir de agora, eu estou só.

Tendo feito desta altitude uma aliada, começo a flertar com ela, para que nasça em mim uma vontade natural de atirar-me. Procuro enamorar-me dela para que nasça em mim a coragem de um amante apaixonado.

Levo meu corpo para frente e, depois de uma pausa, dou um forte impulso para trás, libertando os pés e as mãos ao mesmo tempo da aeronave e rendendo-me de corpo e alma ao espaço, sem hesitação.

Sem retorno.

Coloco as pernas, a cabeça e os braços para trás, em contraste ao meu quadril e sou engolido por uma sensação que perdurará ao tempo. Caio. Sou misturado ao ar e entregue às leis do universo; não somente à lei da gravidade, mas às leis de Morfeu.

Caio.

Caio.

Caio.

Vou caindo.

            Caindo…

                                   Caindo…

                        Caindo…

Segundos que parecem séculos. Uma vida é um piscar de olhos.

O Brasil de minha memória ficou para trás, como se tivesse permanecido dentro daquele monomotor; o Brasil das belezas e das misérias; o Brasil dos exemplos pessoais, mas também de um nível de violência, inflação e corrupção ao qual quase me habituara. O Brasil, o meu passado, tudo ficou no sorriso daquele instrutor. As favelas, os trabalhadores honestos, os chopes de sexta-feira, a humildade, as duras da polícia, a força de vontade, balas perdidas, o sorriso sem dentes, meus amigos que estão seguindo diferentes caminhos, meu sobrinho que está crescendo longe de meus olhos e minhas antigas paixões. Do Rio, apenas contatos telefônicos, notícias via internet e jornais que são vendidos com dois dias de atraso, permitindo-me acompanhar, de fora, as notícias mais importantes de "minha" Nação.

Caindo…

                        Caindo…

"Estudante assassinada pela polícia após assalto frustrado!"

"Racionamento de luz no país com os maiores recursos hidrelétricos do mundo!"

Caindo…

                                   Caindo…

"A destruição da Amazônia!"

"Morte do primeiro deus da televisão!"

"Sequestro da filha do segundo deus da televisão!"

"Plano contra fome!"

Caindo…

Acontecimentos que passaram a ocorrer distantes demais para continuarem a interferir, ao menos diretamente, em minha vida. Apenas um cordão sentimental se mantem, apesar das palavras que continuam soando:

Não volte! A coisa aqui está cada vez pior!

Mas eu quero voltar!

Não volte! Mantenha-se aí, pois é onde todos nós gostaríamos de estar e você já deu esse passo! Não desista!

Caindo…

Mas se, para os outros, viver na Europa significa uma idealização perfeita, repleta de romantismo, para mim, é uma realidade que eu devo enfrentar. Nenhum lugar é feito apenas de flores, e é fácil falar.

Abertura automática: este tipo de paraquedas está preparado para ser engatilhado por um gancho que, amarrado a um cabo resistente, irá abrir o paraquedas depois do salto com a tensão no cabo resultante do afastamento do paraquedista em relação ao avião. Este tipo de paraquedas permite, assim, saltos de baixa altitude, já que o paraquedas é aberto quase instantaneamente. – dissera o instrutor durante a formação, como se fosse uma Wikipedia com pernas.

O avião provoca a abertura automática do paraquedas, e um solavanco recorda-me de sua existência.

Ainda estou caindo…

Caindo…

Caindo mais devagar…

Depois de mais alguns trancos, o equipamento abre-se por completo, permitindo-me dividir, com o vento, o seu comando.

Olho para cima e vejo o paraquedas aberto, olho para baixo e vejo o aeródromo. Grito. Grito bem alto. Balanço as pernas e faço testes com o equipamento. Não muitos, pois ainda tenho medo que ele se feche, que ele se rompa, que ele se parta. Olho para o horizonte, para o meu passado, para o meu futuro. Será que aquele pássaro está me vendo? Será que apenas ele ouviu meu grito? Será que, além de mim, apenas ele compartilha minha euforia? Espero que o pássaro se desvie. Olho para dentro de mim e vejo alguém diferente, alguém que agora sabe por que os pássaros cantam. Dentro do avião, eu ainda era uma pedra no fundo de um rio; no ar, sou uma pedra que não deixará mais de rolar.

Dormindo ou acordado, aqui estou eu, a três mil e poucos pés de altitude, admirando cada vez mais este novo velho mundo.

Tiziano

Sou pai. Não carreguei meu bebê na barriga, não tive enjoos, não dormi mal durante os últimos meses, não conheci a dor do parto, mas, no último dia 14 de fevereiro, às duas e cinco da manhã, também dei à luz um filho, abraçado à minha esposa, em uma das mais privilegiadas maternidades do sul da França. De um lado, a cidade de Nice; do outro, a Baía dos Anjos. Havíamos imaginado aqueles momentos durante nove meses. Contudo, quando o querubim pousou, tomamos consciência de que havíamos sido capazes de projetar a cena, não o amor.

O amor incondicional é real; eu posso senti-lo, ele me toca. Não o amor incondicional que já estava aqui quando eu nasci – o amor filial –, tampouco o amor que tem crescido baseado em um respeito mútuo – o amor conjugal –, mas um amor novo para mim, que nasceu pronto quando eu já era homem, por alguém que não tinha feito nada para merecê-lo e por quem eu nunca mais deixaria de sentir o mesmo.

Como é possível amar alguém assim? Quem criou essa capacidade de amar? Não acho que a paternidade seja fundamental para a felicidade humana, mas acho que ela nos possibilita uma felicidade única.

Meu filho dorme. Acaricio a sua cabeça e também acaricio a cabeça de meu pai, por todas às vezes que eu não quis acariciá-la. Acaricio o meu filho como eu gostaria de ainda poder acariciar a cabeça de meu avô. Acaricio o meu filho como eu próprio gostaria de ser acariciado. Amo meu filho com o olhar, com meu gesto repetitivo, na minha posição inconfortável (desde que ele esteja confortável). Não quero que ele deseje ir a lugar algum, pelo menos enquanto não chegar a sua hora de crescer. Sei que não sou perfeito e que não serei um pai perfeito, mas farei tudo para que o meu filho diga que eu fui perfeito, tendo conhecido meus defeitos.

Será que ele vai gostar de xadrez? Será que ele vai gostar de tocar piano? Será que ele vai querer aprender japonês? Será que ele vai amar conhecer outras culturas? Ou será que ele vai ser mais cartesiano do que eu para que eu o possa amar e respeitar do mesmo jeito, apesar de nossas diferenças? Afinal, meu objetivo não será nunca que ele seja aquilo que eu gostaria de ter sido, mas que ele seja uma pessoa feliz e digna.

Que os homens desejem a sua amizade por saberem que ele é alguém de confiança. Que as mulheres procurem a sua companhia por saberem que ele as respeita. Que os mais ricos lhe deem oportunidades por saberem que ele é alguém corajoso e desinteressado. Que os pobres aceitem a sua ajuda por saberem que ele é alguém especial e humilde. Que ele respeite todas as religiões mesmo que decida não ter alguma. Que ele não faça diferença entre as cores e que respeite os perdedores, assim como eu desejo que ele aprenda a perder. E que ele seja mesmo um mestre na arte de perder, pois uma das maiores vitórias que um ser humano pode alcançar na vida é não ver alguma diferença entre ganhos e perdas, quando no final tudo é experiência.

Que ele chore e ria, que ele ame e perdoe, que ele durma tranquilo e corra com energia, que ele aprecie cada novo nascer do sol como se nunca o tivesse apreciado antes, pois a ele caberá viver a sua vida sem a encarar como se esta fosse a última, mas com a certeza de que cada oportunidade que temos é única.

Primeiros Textos (2005-2007)

Letras Cadentes

Gostaria de resumir a história do universo, sem pretensões nem novidades, apenas pelo exercício de criar uma linha contínua e curta que nos ajude a imaginar um pouco mais o lugar para onde estamos indo.

Inicio tudo com uma grande explosão, uma onomatopeia das histórias em quadrinhos: BUM. Onde não havia nada, crio um texto, para surgir, do caos, a comunicação.

Perambulando pela página flutuam ideias sem sentido, palavras ao acaso, à espera de se agruparem graças à massa gravitacional de cada uma, graças a alguma afinidade semântica.

¨

Cortando a página, passou um trema voando. Para quem não viu, de novo, só daqui a 262 palavras. Um aglomerado de letras menor lá, outro maior cá e o nascimento das primeiras estrelas - sem luz, não há vida.

Planetas, enciclopédias, cometas, crônicas.

Meteoros, excertos, buraco negro, última gaveta da cômoda.

encanto De tudo ao meu serei Antes, e com tal encante mais zelo, e

sempre, tanto Que em do Dele se face meu e mesmo em cada me vão a momento

meu contentamento E atento do em seu hei de meu

espalhar meu Ao seu E rir derramar maior riso e Quero canto louvor

vivê-lo pranto seu pesar ou assim, mais de imortal, tarde infinito quem pensamento amor procure

sabe a tive): angústia vive amor sabe dizer

posto solidão, morte, fim de quem Quem ama quando Eu possa (que me não seja dure Que

que é chama Mas que Quem seja E enquanto

Acabamos de atravessar um campo de asteroides.

Pare. O universo continua em expansão. Bibliotecas passaram a existir, e um sistema particular foi organizado. Investiguemos, agora, uma de suas menores obras, não muito longe da janela para não congelar, não muito perto da saída para não a roubarem. Chamá-la-emos Terra (falta-me inspiração).

Das amebas tivemos necessidade dos substantivos, dos substantivos vieram os peixes, dos peixes vieram os répteis, depois chegaram as samambaias, os dinossauros, quase o fim do mundo, a era glacial, a mulher, o homem, Machado de Assis e, finalmente, os profetas - profissão esquisita, promotora do fim do mundo, somente é promissora se não formos promissores.

No princípio era o verbo e o verbo eram sem concordância. Criaram as escolas e, com elas, a freqüência escolar. Opa! Um trema! Você viu? Você viu? Nem eles, que estavam mais preocupados com comida, habitação e reprodução do que com outra coisa (não mudamos muito). Honra seja feita àquele nosso antepassado, quem, tentando escrever, desenhou, grafia do hemisfério direito do seu cérebro.

– O que é isso?

– Um gnu! - nascendo também o primeiro diálogo.

E lá fomos nós, publicar.

Primeiro, criamos mais de 200 línguas - trabalho para uma infinidade de tradutores - e, em seguida, o ponto de vista, os direitos de autor, os cortes e as adaptações para o cinema. Aliás, se repararmos, o microcosmo tem refletido invariavelmente o macrocosmo. Queremos uma oração perfeita e que ela seja nossa. Se vier uma vírgula, ótimo, dividiremos a frase com quem precisa. Se vier um ponto final, lamento, é melhor procurar aquilo que você precisa em algum sebo. Nasceram algumas exceções, claro, mas, até hoje, ninguém sabe definir o momento exato onde começam a sobrar os adjetivos e o lapso do tempo onde a ideia deve terminar.

E para o futuro...

A capacidade de nos surpreender está diminuindo. No futuro, não existirá mais ópio do povo que nos faça ficar de boca aberta. Mas, enquanto esse dia não chega, enquanto ainda adoramos um entretenimento, continuaremos o nosso papel de semideuses, virando páginas, prosseguindo na escolha entre viver acreditando no prefácio ou no epílogo, entre achar o quanto é melhor não pensar no fim ou tentar engrandecer a literatura, cujo brilho será, sempre, tão pequeno quanto o brilho da mais grandiosa das estrelas (tudo é relativo), mas, como não iremos a parte alguma mesmo, que ao menos a gente continue esta viagem com a companhia de um bom livro.

Oração de um quase ex-alcóolatra I

Neste mar de conflitos, deixamo-nos penetrar em nossos sonhos mais temidos. A tempestade que cai, fraca e eterna, transforma-nos a todos em histórias em quadrinhos, heróis, cômicos, infantis e quadrados. Partimos de uma natureza cega e ignorante e caminhamos para algo parecido com um bonsai podado.

Lembra-se de como éramos corajosos? Ríamos de tudo e chorávamos quando não ganhávamos uma goma-de-mascar, queríamos o mundo, e o mesmo mundo ruía quando não conseguíamos os nossos objetivos. Mas é claro que isso foi antes do inverno, antes da estação que começou a destruir nossos desejos frustrados com o objetivo de nos transformar em pessoas melhores. Começamos a aceitar a vida da maneira como ela veio, arrasadora como um napalm, para um dia chamarmos a isso tudo de maturidade.

Gostaria que me deixassem um pouco em paz. Gostaria de morrer um pouco angustiado por não ter conseguido tudo o que quis desta vida, morrer incompleto.

– Deus, O Senhor está aí? Não destrua tão rapidamente o que eu tenho de pior. Sinto-me um fraco com esta imobilidade dos sábios, santos e profetas. Ainda quero morrer com uma explosão do meu ser ao invés de um dia, simplesmente, parar de respirar; quero morrer sem ter tido tempo para meditar sobre os fracassos e os sucessos que tive na vida; quero apenas viver, viver da maneira mais plena possível.