Bianca colocou dois dentes de alho descascados no pilão e continuou a pilar. O marido dizia que feijão bom tinha de estar misturado com alho cru e que comer duas cabeças de alho cru por dia fazia bem à saúde. Ela não. Detestava alho. Não gostava do gosto, do odor, do cheiro que deixava na mão. No começo, havia tentado a receita para agradá-lo, mas, com o tempo, terminara por voltar a comer feijão sem o tal bolbo.
Ela desligou as bocas do fogão e pegou um prato no armário. Quatro colheres de arroz e quatro colheres de feijão sobre o arroz. Raspou o conteúdo do pilão por cima e misturou tudo. O pasto fumegou, e o cheiro e a imagem desenharam uma careta na cara de Bianca. Bife acebolado, cenoura, farofa. Ela segurou o prato com as duas mãos, admirou o resultado final e saiu da cozinha, apagando a luz.
Carvalho estava sentado à mesa, de frente para a televisão. Seu time estava perdendo. Bianca se aproximou da mesa, colocou o prato entre os dois talheres e se afastou com um passo para trás. Sem tirar os olhos da televisão, ele resmungou para que ela lhe trouxesse outra cerveja.
Estavam casados havia trinta anos. Ele havia sido o primeiro e único homem da sua vida. Carvalho era bom de bola e popular. Haviam tido dois filhos, seus filhos estavam estudando na capital, e ela, ao contrário dele, tinha poucas amigas.
O telefone começou a tocar. Ela foi em direção ao aparelho, mas logo parou. Ele havia virado o rosto na direção dela, e ela não ousara dar outro passo. O telefone continuou a tocar por alguns segundos. Eles se encararam durante algum tempo até que o telefone parou de tocar. Ele voltou a olhar para a televisão, e ela voltou para a cozinha, acendendo de novo a luz.
Uma vez a nova garrafa de cerveja nas mãos do marido, Bianca foi até o banheiro, trancou a porta e suspirou. Olhou-se no espelho e passou o indicador no roxo que começava a aparecer. Seu pulso direito exibia marcas de dedos, e um dos seus brincos não estava mais na orelha. Ela se encarou. Tirou o brinco que resistira aos acontecimentos, colocou-o na caixa de bijuterias, pegou a escova de cabelos que estava na pia e penteou a juba. Passou um pouco de perfume no pescoço, o mais caro que tinha, e, por fim, aplicou um batom. Seus lábios ficaram vermelhos.
Havia sido uma excelente dançarina quando jovem. Havia mesmo ganho o concurso de dança de salão da sua cidade. Assim que se casara, entretanto, seu marido lhe dissera que "mulher casada não podia dançar com outros homens", levou-a para o norte do estado e ela parara de dançar.
Quando Bianca voltou para a sala, o marido já havia terminado de comer e o jogo acabado. Seu time perdera. Ela pegou o porta-retratos caído no chão e colocou-o de volta na biblioteca. Ela também se sentou à mesa e olhou para o prato do marido.
Ele terminou a cerveja, bocejou e disse que estava cansado. Disse que aquele time era uma merda e que iria dormir. E assim foi, sem dizer mais nenhuma palavra, desaparecendo na escuridão do único quarto da casa.
Ela olhou de novo para o prato, levantou-se e desligou a televisão. Levou o prato, os talheres e a garrafa de cerveja vazia para a cozinha. Colocou a garrafa em uma bolsa cheia de outras garrafas vazias, pôs o prato e os talheres na máquina de lavar e a ligou. Programa intensivo. Ela meteu a mão no bolso do avental e tirou uma caixa vazia. Tarja preta. Recolocou a caixa no bolso. Ela, então, olhou de novo para o céu, viu que uma estrela havia aparecido e apoiou-se na pia. Bianca sorriu.