Sonata de Lausanne
Textos antigos, 2011
Primeiro Movimento
(allegro con spirito)
A areia do deserto escorria, recordando uma ampulheta sem fim, mudando dunas de lugar e soterrando, continuamente, impérios vencidos. Não existe nada mais forte que o vento, dizem os tuaregues, pois o sol nasce e morre, a lua brilha e se esconde, mas o vento, fraco ou forte, nunca deixa de soprar. E é nesse mar chamado deserto – região inóspita para alguns, lar para outros – que começa a nossa história.
Ele cavalgava só, enrolado num turbante; sem pressa e sem destino; sem nada nos bolsos e sem ter deixado nada para trás, portando apenas a certeza de poder encontrar, nesse tipo de paisagem, o essencial para a sua sobrevivência. Seguia para não parar, cessava de mover-se para repousar. Comia quando sentia fome e bebia para não ter sede. Seu nome era Ahamarã, que significa: guiado por Deus.
De personalidade difícil, capaz de sorrir para uma serpente e chorar por causa de um pôr-do-sol, era alguém cuja autossuficiência conquistara, tanto material quanto espiritual. Conheceu diversas cidades e viveu a segurança de um lar, mas, abrindo mão de tudo aquilo que possuiu de mais valioso, encontrara a sua própria liberdade.
Mestre de arte rara, reconhecia, com antecedência, a aproximação de uma tempestade; via coisas onde um olhar deseducado nada seria capaz de ver e percebia, a quilômetros, a existência de algum oásis. Místico – psicótico para os descrentes –, orientava-se com a ajuda dos pontos cardinais e pela certeza de que sempre encontraria aquilo que buscasse. Era a fé que movia o homem, mas o homem que controlava a vida.
“Ahamarã, Ahamarã, parido de mulher, para onde vais?”
Para alguns, o deserto é o lugar mais rumoroso do mundo. Contudo, para Ahamarã, ali se tornara sua realidade e casa.
A serenidade de saber que a solidão é apenas um meio e não um fim: um dos muitos caminhos para domarmos os nossos próprios sentidos e para aprendermos a como nos satisfazer com pouco – um dos muitos atalhos para um lugar onde recordaremos o passado sem ansiedade e nos conscientizaremos de que a felicidade não está nos ópios da vida, mas sempre presente, apenas a esperar pelo nosso abraço. Felicidade: esta linda mulher que não vence e nem perde, que não sai vitoriosa e que nunca será derrotada.
– Para onde vais, meu filho?
– Vou até ao fim do mundo, minha mãe. Até ao fim do mundo.
O seu cavalo trotava, deixando, para trás, uma cicatriz temporária, e ele sorria, imaginando um futuro capaz de tudo, menos de ser apenas uma repetição de seu próprio passado.
“Ahamarã, amado por uns, odiado por outros, o que mais esperas?”
Segundo movimento
(adagio)
A metade de seu corpo estava soterrada. Ahamarã antecipou a tempestade e abrigou-se a tempo num rochedo. Entretanto, como a tempestade fora violenta e durara horas, a mesma rocha que o salvara, servindo-lhe de refúgio, impedia-o agora de se mover, pois uma grande quantidade de areia fora represada ao seu redor.
Intempérie bizarra. Jamais havia visto um remoinho tão devastador e repentino como aquele. Toda sua noção de sobrevivência ficou reduzida a correr até às brechas de uma montanha, enquanto, ao seu cavalo, restou apenas precipitar-se na direção contrária.
– Espero que ele não tenha sofrido…
Sem nenhum apoio para se desenterrar, Ahamarã olhou para cima e viu o céu por uma abertura. Tinha de fazer algo antes que o frio noturno chegasse, ou encontraria, naquele mesmo ambiente que fora testemunha de seu renascimento, seu túmulo.
Ele movimentou-se com força e nada. Cada pequena folga que conquistava era imediatamente preenchida por mais grãos. A consciência de seu apuro. A improbabilidade de salvação.
Se bem que a força de vontade não era para ali chamada. Uma lição que ele também tinha aprendido era que ele poderia viver com o deserto, retirar dele a água da vida, mas nunca poderia superá-lo. A eternidade é longa, o infinito é distante, e, como ser humano que encontrara sua autonomia, Ahamarã sabia que um dia chegaria o momento no qual ele deveria apenas aceitar.
Mas ainda era cedo para desistir. Ele juntou mais forças, respirou fundo e prendeu a respiração. Tentou ocupar o maior espaço possível ao seu redor. Sua única chance estava em alcançar a parede maciça, e, sendo assim, tinha de unificar todo seu esforço numa só tentativa.
Ele, então, contou mentalmente até três, espirou como se seu corpo explodisse numa só direção, mas, de novo, nada. Nem um centímetro de liberdade física, independente do estado de seu espírito.
Os minutos correram, transformaram-se em horas, e o céu começou a escurecer. Ele ainda identificava as cores do deserto, mas a temperatura descia rapidamente. O frio, o frio que amortece a alma e facilita as coisas.
Mas, afinal, para que sair dali? Por que ele sairia dali? No momento que havia se libertado da ansiedade, dos sentimentos de posse e de todos os prazeres temporâneos da vida, qual seria o motivo ao qual se agarraria para tentar escapar de uma morte certa? Não tinha mais ambições, não queria possuir mais nada, estava bem, sereno, então, não seria melhor se deixar levar e… aceitar? Não era melhor relaxar e partir para o mundo etéreo, já que nada mais ali atraía sua paixão? Já que nem mais paixão ele tinha, somente aquele estado inquebrável de tranqüilidade?
Morrer, partir, voar… Como um grão de areia, soltar-se ao vento, ir embora, para bem longe, para longe do mundo dos vivos e do reino das ilusões. Fazer parte de tudo e voltar para o lugar de onde havia vindo.
Ahamarã abriu os olhos e percebeu que tinha cochilado e teria voltado a cochilar se não fosse um movimento no lusco-fusco. Era um rato. Uma pequena e maravilhosa criatura, pensou.
Quando estamos no meio das cidades, na multidão, esbarrando-nos com milhares de pessoas que não procuramos conhecer e esquecemo-nos do mais importante de tudo: o valor da vida. Do valor de uma vida que seja. Ali, sem nenhuma alma por perto, ver a mais insignificante forma de existência era a força da natureza mais valiosa que ele poderia encontrar. A divina vida e o direito de viver de cada um, da maneira mais digna possível.
– Desejo-te toda a sorte do mundo, pequeno.
E Ahamarã dormiu de cansaço e sede.
Sonhou que caminhava num deserto durante um dia infinito, jamais dividido pela noite. E ele caminhava e caminhava, com o sol sobre sua cabeça, com dunas a sua frente, e mais dunas, e nenhum oásis. Finalmente, depois de uma eternidade, ele enxergou um vulto quase imperceptível no horizonte, com roupas escuras, vindo em sua direção. Ahamarã continuou caminhando, e, como aquele outro alguém também não corria, a expectativa se tornou interminável.
Quando ficaram, enfim, mais próximos, Ahamarã começou a definir os traços do viajante. Talvez houvesse tanta idade quanto ele, e o outro se tornou mais próximo, mais próximo, até que, parado diante do estranho, Ahamarã se reconheceu. Era ele próprio. Ahamarã estava diante de si mesmo, com as mesmas roupas e as mesmas rugas. Ele esticou a mão para tocá-lo e o seu outro “eu” fez o mesmo. Quando estavam, todavia, perto de se tocarem com os dedos, Ahamarã sentiu o contato frio de uma superfície entre eles. Ele espalmou a mão, ambos espalmaram, e tocou com sua palma uma superfície lise, reparando que aquele outro alguém era na verdade o seu reflexo.
Ahamarã olhou para o chão, para os lados e para cima e percebeu que tinha chegado diante de um gigantesco espelho, tão enorme que ele era incapaz de ver o seu fim ou imaginar se este existia. Ahamarã agachou-se para cavar um pouco e imaginou que o espelho também seguia até às entranhas infinitas da terra.
Ahamarã colocou-se de pé e olhou para si mesmo. Lembrou-se de como havia partido jovem e como havia mudado, até que sua imagem finalmente falou para ele:
“Fim do passeio, Ahamarã.”
Ahamarã acordou e ouviu rumores do lado de fora da gruta. Eram passos de montaria e o murmúrio de pessoas.
– A vida… – ele murmurou e depois começou a gritar.
Ouvindo-o, algumas pessoas começaram a cavar em sua direção, até que ele sentiu algumas mãos a puxarem-no para fora e água a tocar-lhe os lábios.
“Ahamarã, homem mortal, teu dia ainda não chegou.”
Ele acordou de seu desmaio e a primeira coisa que viu foi um negro tapete de estrelas. Ele estava deitado e coberto. Seu corpo estava aquecido, e ele sentia-se protegido. Ahamarã girou com alguma dificuldade a cabeça para o lado e viu três estranhos a conversarem do outro lado de uma fogueira. Fora salvo e, agradecido, dormiu novamente.
Terceiro movimento
(allegro gentile)
Dizem que os habitantes do deserto são aqueles que mais acreditam em Deus, porque: por terem sido mais expostos ao silêncio, acabaram por ouvir mais o universo e por não terem tido muitas cores que os distraíssem, acabaram por olhar com mais profundidade para as coisas. Contudo, não é o fato de acreditar em algo que deveria definir uma pessoa, mas o que cada uma dessas pessoas faz sem esperar por um retorno. Um ateu que ajude alguém tem muito mais valor que um crente que faça algo à espera de alguma recompensa.
Ahamarã acordou e sentou-se junto de seus salvadores. Queria aproveitar de mais perto o calor do fogo. E foi o que estava mais próximo dele aquele que falou:
– Já era hora. Vamos, coma…
– Obrigado.
Ahamarã esticou o braço e arrancou uma lasca do cordeiro que estava sendo grelhado.
Permanecera três dias deitado, a recuperar-se. Portadores de remédios naturais, aqueles senhores deram-lhe de beber e comer, e, agora, não era com menos satisfação que o viam recuperado.
– É melhor vires conosco. Não temos muito, mas, afinal, irás precisar de uma nova montaria.
– E para onde ides?
– Para Belém.
– Belém…
– Conheces alguém que te possa ajudar na Judéia?
– Não.
– Poderemos apresentar-te a algumas pessoas.
– E o que buscais? Sois mercadores? – disse Ahamarã.
Os três sábios entreolharam-se.
– Não. Estamos indo para o nascimento de alguém.
– Perdão, jovem, como te chamas?
– Ahamarã.
– Ahamarã, guiado por Deus…
– Ao vosso serviço.
– Eu sou Baltazar. Esse é Gaspar e o calado ali se chama Melchior.
– Deus seja convosco.
– Escapaste de uma, hein? – disse Gaspar.
– Não sei como agradecer.
– Somos apenas instrumentos. – concluiu Melchior.
A pequena caravana levantou acampamento e continuou seu caminho rumo a este. Assim como Ahamarã, os três homens também conheciam a cartografia escrita nos céus.
“Ahamarã, Ahamarã, ainda não vistes nada.”
Bastaram três dias de cavalgada até à referida cidade hebraica. Chegaram durante o dia e, como eram pessoas importantes nas cidades de onde vieram, procuraram a autoridade máxima daquele estado, a fim de comunicarem suas presenças. E intenções.
Ahamarã esperou pelos sábios fora do grande palácio, após ter sido encarregado da montaria e compra de mantimentos – a confiança que estranhos podem depositar em nós será sempre uma dádiva descida sobre as nossas existências.
Ao cair da noite, porém, Ahamarã, que ainda os acompanhava, compreendeu que algo realmente estranho estava acontecendo. A estrela que seguiram, nova no céu, não passara apenas a ser a estrela mais brilhante que já vira, mas também passou a emitir, num vertical perfeito, um fino raio de luz.
Ali estava a criança que procuravam.
Eles aproximaram-se do que seria uma manjedoura, e Ahamarã viu os três homens darem valiosos presentes para o recém-nascido. Reverenciaram-no como se ele fosse um rei, e os pais da criança se mostraram muito agradecidos.
Horas passaram, e os homens resolveram partir.
– Ahamarã, amanhã iremos falar com um ferreiro que poderá ajudar-te a começar uma nova vida.
– Baltazar, não se preocupe comigo. Eu vou ficar por aqui.
Baltazar olhou para seus amigos, para Ahamarã, e sorriu. Compreendia sua decisão.
– Fique com Deus, jovem.
Os três homens acenaram e partiram, e Ahamarã ficou ali, a olhar para as estrelas.
Era tarde quando ele sentiu um toque em suas costas. Virou-se assustado e, ao reconhecer o seu cavalo, levantou-se depressa. De alguma maneira ele também havia escapado da tempestade. E, como se estivesse diante de um homem, Ahamarã abraçou-o como a um irmão, para, entre lágrimas de alegria, dizer:
– Estamos em casa, meu amigo.