Preparar teletransporte
Tertúlia, 2017
“Espero que não distorçam muito aquilo que ele tem estado a dizer”.
Sentado na cadeira do almirante, na minha cadeira, meditava sobre o planeta azul à minha frente. Era a primeira vez que interferíamos no destino de uma raça alienígena.
Foram duas décadas de discussões. Desde a criação da Constituição Universal, jamais havíamos revogado uma de suas leis, até que, enfim, ignoramos o Parágrafo Número Dois.
Os nove sistemas da Confederação haviam chegado a um acordo. Todos acharam que seria melhor fazer alguma coisa a deixá-los assim, tão perdidos. Não podíamos mais “não interferir”. Os governos opressores haviam se multiplicado, o direito de vingança continuava em vigor, a corrupção se havia generalizado, e a impunidade havia se transformado em sinônimo de poder. Infelizmente, porém, eu nunca saberia se aquela missão daria bons frutos. Ela havia seus riscos e havia sido categorizada como: “missão longo prazo”.
O universo – com suas milhões de estrelas e galáxias – decorava o fundo daquele palco, onde o ator principal representava o papel de sua vida.
– Almirante.
Eu não havia reparado na aproximação do meu imediato.
– Sim?
– Estamos prontos. Nosso homem chegou às coordenadas. – olhei para a sua barba branca e tentei confortar-me com a sua experiência.
– Estão todos a postos?
– Aguardamos apenas a sua presença.
– Obrigado. Eu já estou indo.
– Sim, senhor.
Ele me deu as costas e deixou a ponte de comando, através da porta automática.
Olhei de novo para o planeta azul e passei a ponta do meu polegar no meu pescoço, de lado a lado.
– Deus nos proteja.
Fui atrás do meu imediato, atravessei o corredor principal de nossa nave e entrei na sala de comunicação. Os presentes me olharam e sorriram, mas ninguém disse nada. Todos conheciam os riscos daquela missão.
– Senhoras, senhores. – disse e aproximei-me da única cadeira livre. Sentei-me.
O responsável pelas comunicações olhou de novo para mim e acenou a cabeça.
– Estamos prontos, senhor. – ele disse.
Respondi também com um gesto de cabeça e olhei para o grande monitor da sala.
– Estabelecer contato.
As luzes se apagaram e o monitor se iluminou. Na imagem, um homem no meio de várias árvores olhava para cima, como se pudesse nos ver. Era o nosso homem.
– Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice. Não se faça, contudo, a minha vontade, mas a tua.
Um silêncio cortou a sala e senti que várias cabeças viraram na minha direção. Aquelas eram as palavras-chaves para abortar missão.
– O que houve?
– As coisas se complicaram.
– Como assim?
– Judas irá me trair.
– Tem certeza?
– Ontem ele se encontrou com uma das pessoas que não tem gostado do que eu tenho dito e a conversa que eles tiveram ficou registrada durante horas na sua íris. Ele não conseguiu nem mesmo mais me encarar.
Ninguém saberia o que lhe dizer naquele momento, mas eu era a única pessoa que tinha a obrigação de fazê-lo.
– Você está com medo?
– Não, senhor. Eu não temo por mim; eu temo por ele.
– Entendo.
Novo silêncio.
– Jesus, escute bem aquilo que eu vou dizer. Nós temos trabalhado juntos por mais de vinte anos e você sabe tudo aquilo que eu penso. Nada mudou. Eu continuo a ser a mesma pessoa que você conheceu no Egito, quando você ainda era apenas um jovem. Mas, enfim, se você achar que tudo que nós temos feito vai além de suas capacidades, se você achar que esta missão não vale a pena, não se preocupe: eu estarei do seu lado. Você poderá para sempre contar comigo.
Eu não ouvi nenhum comentário ao redor de mim, mas senti que toda a minha tripulação teria se orgulhado das minhas palavras.
– Senhor?
– Sim?
– …
– Diga, Jesus.
– Eu não irei decepcioná-lo.
A comunicação foi interrompida, e as luzes se acenderam. Todos os presentes olharam de novo para mim, mas eu deixei a sala de comunicações sem dizer mais nada.
Eu estava prestes a entrar de novo na ponte de comando quando o meu imediato me alcançou.
– Almirante.
– O que foi? – parei e olhei para ele.
– Não se preocupe. Eu tenho certeza de que a nossa missão será um sucesso.
– Eu espero bem que sim.
– Eu tenho certeza. Ele vai ficar bem.
Olhei para os lados e voltei a olhar para ele. Ele era a única pessoa naquela espaçonave que sabia que Jesus era meu filho, inseminado 33 anos antes no ventre de uma jovem chamada Maria.
– Gabriel…
– Sim?
– Alguma novidade sobre o teletransporte? Se alguma coisa a acontecer com ele, nós teremos no máximo quatro dias para trazê-lo de volta e reanimá-lo.
Gabriel sorriu.
– Ainda não, senhor, mas não se preocupe. Eu tenho me encarregado pessoalmente da sua reparação.
– Obrigado, amigo.
Ele colocou a mão no meu braço e se afastou, sem olhar para trás.
– Deus nos proteja. – murmurei.
Passei mais uma vez a ponta do meu polegar no meu pescoço, de lado a lado, e voltei para a ponte de comando.