PQD
Tertúlia, 2013
Como chegar a ser realmente livre?
O altímetro confirma a altitude necessária. Nunca estive tão alto. O instrutor abre a porta do Cesna, e o silêncio é preenchido pelo ronco surdo do motor e pelo fustigar do vento. Estou prestes a dar o meu primeiro salto de paraquedas, em Évora, no Alentejo de Portugal. O avião está a três mil e quinhentos pés de altura e a sete mil e quinhentos quilômetros do Rio de Janeiro, onde nasci.
Estou trabalhando há mais de três anos em Lisboa. Programador de computadores. Participara da conversão do Escudo para o Euro e da adaptação de sistemas informáticos para o ano dois mil, um dos maiores blefes da história e um dos responsáveis por aquela nova migração em massa.
Quase todos os estabelecimentos comerciais portugueses passaram a ter um brasileiro, assim como nas obras, nos escritórios; um povo que se mostrou fácil de distinguir, seja pelas roupas, pelos traços faciais, ou pela maneira de comportar-se – os lusitanos não costumam permanecer por mais de duas horas num telefone público, ainda mais de chinelos.
Eu havia sido apenas mais um no meio daquele novo êxodo no qual o Brasil redescobriu Portugal, e Portugal redefiniu o Brasil.
Primeiro, eles haviam cultivado – coloque novela nisso – uma visão quase perfeita de seus parentes do ultramar, na qual todas as mulheres seriam belas e os rapazes educados. Além disso, nas casas brasileiras, um porta-gelo reabastecido estaria sempre esperando o chefe da família voltar (de um trabalho longe da realidade do salário mínimo verde-amarelo).
Enfim, os “brazucas” – ver “portuga”, brasileirismo depreciativo – demonstraram com o próprio exemplo a verdadeira face do Cabral: assim como em qualquer país do mundo, um número ínfimo de seus habitantes é capa de revista e nem todos pensam que batucar na mesa não é aconselhável.
O que é que eu estou fazendo aqui?
Outra característica pela qual ficamos conhecidos: nossas demasiadas saudades de casa.
Subimos em espiral para não perder o aeródromo de vista, e, como eu fui o último a entrar no avião, serei o primeiro a sair, com uma coreografia a ser iniciada com um sinal.
Deve ser esse.
O instrutor abaixou o polegar.
Coloco o pé esquerdo para o lado, e um tapa no meu calcanhar recorda-me do início correto. Reformulação dos movimentos. Levo o pé para fora, desta vez junto da mão esquerda e sinto um tranco ainda mais forte; o vento é a força da natureza que não irá parar por um segundo, sequer por mim, para que eu salte.
Minha perna, lutando contra uma corrente terrível e invisível, pisa no trem de pouso, enquanto minha mão alcança o suporte frio da asa. A seguir, é a vez do meu braço e pé direitos, para eu entrar num ambiente que jamais havia entrado antes, no meio do céu e a tocar diretamente o ar.
Um mundo irreal desfila. Mal consigo olhar para frente, por causa do mesmo vento, e o chão se comunica comigo através de pequenos quadrados desenhados; casas e carros do tamanho de formigas, pintura retorcida dentro de uma mente excitada.
Com as botas quase sobre as rodas, as mãos segurando o suporte da asa direita, dou curtos passos laterais, afastando-me da porta.
Eu devo lutar contra o medo.
Solidão. Chegara a um país onde não conhecia ninguém nem mesmo o idioma – rezara por um tradutor durante a minha primeira semana de trabalho – mas decidira persistir. No mesmo emprego de sempre, ainda acredito ser capaz de sentir a minha vida um pouco mais útil, bastante diversa dos anos de esbórnia que ficaram para trás. Tenho buscado, na distância, um crescimento artístico e, quiçá, encontrar minha humanidade, aquela escondida e ignorada dentro de cada um de nós. Sonho retornar ao Rio, sem dúvida alguma, mas somente depois de humanizar meus hábitos e escrever meu livro. E, já que eu partira para longe das pessoas que amo, abrindo mão de preciosos anos de convivência com elas, prefiro continuar apostando alto.
Calma.
Olho para minhas mãos e medito sobre qual é a maneira mais coerente para pensar neste momento. Como a partir de um pensamento lógico não é possível que eu esteja aqui, tudo deve ser uma ilusão que acabará a qualquer instante – na cama, no ar, no chão. Devo duvidar que estou acordado e acreditar que tudo não passa de uma fantasia, de uma rápida e profunda quimera; uma nova interpretação das coisas que será capaz de transformar todo este perigo em algo tão etéreo quanto os próprios sonhos. É isso. Eu estou dormindo, e tudo na vida, como este instante, não é real.
Sete dias depois de pousar na Santa Terrinha, quase desistira e voltara para casa; para alguém habituado à presença de parentes, amigos e lugares conhecidos, ficar mais de uma semana longe de tudo e de todos pode levar-nos a um ato de desespero. Tivera, então, de inculcar metas na minha cabeça e arranjar uma força sonâmbula para continuar por escassos seis meses, tempo que seria suficiente para que, ao menos, minha mãe conhecesse a Europa; ela merecia mais do que isso.
Os seis meses distanciaram-se, minha mãe já veio me visitar duas vezes, e eu continuo seguindo adiante.
“Quem achar a sua vida a perderá e quem perder sua vida por amor de mim a encontrará.” Jesus passou em minha mente assim como os primeiros cristãos; assassinados, que sorriam e cantavam, enquanto eram devorados por leões. Penso no casamento, no trabalho, no egoísmo, nos vícios e nas coisas pelas quais lutamos e que dão algum significado à nossa existência. Penso nas contas bancárias, nas roupas de marca, nos carros e em vários símbolos da sociedade moderna. Tenho negado os ciclos viciosos do mundo e buscado aquele algo mais, pulando de braços abertos para fora do conformismo e dizendo um sonoro “não”, como se pudesse gritar para Deus que eu não compactuo com toda esta lenta evolução.
Infelizmente, eu tenho descoberto que a distinção que conseguimos com aquilo que compramos se esta propagando, de maneira igual, mundo afora.
Passamos a ser ratos de laboratórios. Transformaram-nos em frutos duma sociedade de consumo e classificaram-nos como um poder de compra. Tamanha fora a luz do Iluminismo que essa mesma luz nos cegou.
Eu olho para a esquerda e vejo um novo gesto do instrutor, o que significa que, a partir de agora, eu estou só.
Tendo feito desta altitude uma aliada, começo a flertar com ela, para que nasça em mim uma vontade natural de atirar-me. Procuro enamorar-me dela para que nasça em mim a coragem de um amante apaixonado.
Levo meu corpo para frente e, depois de uma pausa, dou um forte impulso para trás, libertando os pés e as mãos ao mesmo tempo da aeronave e rendendo-me de corpo e alma ao espaço, sem hesitação.
Sem retorno.
Coloco as pernas, a cabeça e os braços para trás, em contraste ao meu quadril e sou engolido por uma sensação que perdurará ao tempo. Caio. Sou misturado ao ar e entregue às leis do universo; não somente à lei da gravidade, mas às leis de Morfeu.
Caio.
Caio.
Caio.
Vou caindo.
Caindo…
Caindo…
Caindo…
Segundos que parecem séculos. Uma vida é um piscar de olhos.
O Brasil de minha memória ficou para trás, como se tivesse permanecido dentro daquele monomotor; o Brasil das belezas e das misérias; o Brasil dos exemplos pessoais, mas também de um nível de violência, inflação e corrupção ao qual quase me habituara. O Brasil, o meu passado, tudo ficou no sorriso daquele instrutor. As favelas, os trabalhadores honestos, os chopes de sexta-feira, a humildade, as duras da polícia, a força de vontade, balas perdidas, o sorriso sem dentes, meus amigos que estão seguindo diferentes caminhos, meu sobrinho que está crescendo longe de meus olhos e minhas antigas paixões. Do Rio, apenas contatos telefônicos, notícias via internet e jornais que são vendidos com dois dias de atraso, permitindo-me acompanhar, de fora, as notícias mais importantes de “minha” Nação.
Caindo…
Caindo…
“Estudante assassinada pela polícia após assalto frustrado!”
“Racionamento de luz no país com os maiores recursos hidrelétricos do mundo!”
Caindo…
Caindo…
“A destruição da Amazônia!”
“Morte do primeiro deus da televisão!”
“Sequestro da filha do segundo deus da televisão!”
“Plano contra fome!”
Caindo…
Acontecimentos que passaram a ocorrer distantes demais para continuarem a interferir, ao menos diretamente, em minha vida. Apenas um cordão sentimental se mantem, apesar das palavras que continuam soando:
– Não volte! A coisa aqui está cada vez pior!
– Mas eu quero voltar!
– Não volte! Mantenha-se aí, pois é onde todos nós gostaríamos de estar e você já deu esse passo! Não desista!
Caindo…
Mas se, para os outros, viver na Europa significa uma idealização perfeita, repleta de romantismo, para mim, é uma realidade que eu devo enfrentar. Nenhum lugar é feito apenas de flores, e é fácil falar.
– Abertura automática: este tipo de paraquedas está preparado para ser engatilhado por um gancho que, amarrado a um cabo resistente, irá abrir o paraquedas depois do salto com a tensão no cabo resultante do afastamento do paraquedista em relação ao avião. Este tipo de paraquedas permite, assim, saltos de baixa altitude, já que o paraquedas é aberto quase instantaneamente. – dissera o instrutor durante a formação, como se fosse uma Wikipedia com pernas.
O avião provoca a abertura automática do paraquedas, e um solavanco recorda-me de sua existência.
Ainda estou caindo…
Caindo…
Caindo mais devagar…
Depois de mais alguns trancos, o equipamento abre-se por completo, permitindo-me dividir, com o vento, o seu comando.
Olho para cima e vejo o paraquedas aberto, olho para baixo e vejo o aeródromo. Grito. Grito bem alto. Balanço as pernas e faço testes com o equipamento. Não muitos, pois ainda tenho medo que ele se feche, que ele se rompa, que ele se parta. Olho para o horizonte, para o meu passado, para o meu futuro. Será que aquele pássaro está me vendo? Será que apenas ele ouviu meu grito? Será que, além de mim, apenas ele compartilha minha euforia? Espero que o pássaro se desvie. Olho para dentro de mim e vejo alguém diferente, alguém que agora sabe por que os pássaros cantam. Dentro do avião, eu ainda era uma pedra no fundo de um rio; no ar, sou uma pedra que não deixará mais de rolar.
Dormindo ou acordado, aqui estou eu, a três mil e poucos pés de altitude, admirando cada vez mais este novo velho mundo.