Olhos que veem
Textos antigos, 2011
Ele acordou, e à escura realidade seus pensamentos retornaram. Despertar de manhã e não sentir a diferença entre abrir os olhos e deixá-los fechados. Limitou-se a tocar os ponteiros de seu relógio com a ponta dos dedos e recordar-se de que era domingo. Ele e sua esposa teriam todo o dia para aproveitar.
Procurando-a, passou a mão no lençol de seda e lembrou-se da noite anterior. Uma alma que sempre buscava o mesmo busto, assim era sua cabeça. O tilintar dos pratos, neste ínterim, e o cheiro de café indicaram-lhe o paraíso.
Sentou-se na beirada da cama e enfiou os pés nos pantufos. Eles não tinham ido a lugar algum. E, a esticar os braços, ouviu estalo.
Nascera assim. Só conhecia uma cor. Se bem que gostava de falar sobre elas. Relacionava-as com sentimentos, recordações e pessoas. O branco quando sentia paz, o azul era sua infância, sua esposa portava o vermelho, e o preto, bem, o preto era a cor.
Levantou-se e ajeitou o pijama na cintura. Virou-se para a direita, deu dois passos, tocou com a mão esquerda o armário, direcionou-se à direita, deu mais três passos – a mão harpeando a madeira – e tomou à esquerda. Deu três passos, saiu do quarto, ergueu a mão à direita, tocou a maçaneta do banheiro e girou-a, abrindo a porta. Fechou-a atrás de si e procurou o vaso ainda um passo à frente. Abaixou a calça e sentou-se para urinar. Pensou em uma chuveirada, mas almejava um café. Sacudiu seu corpo e levantou-se junto das calças. Voltou-se para o lavatório, tratou dos dentes e das mãos – não nessa ordem –, lavou a cara, passou a mão nos cabelos para trás, pegou a toalha de mão, enxugou-se e saiu do aposento, fechando novamente a porta.
Volveu à direita, continuou no corredor por dois passos e pisou na calda do gato. O miado foi tão estridente que o bípede sentiu mais dor que o felino.
Sua mulher veio até eles por causa do rumor, e do tamborim não havia mais sinal. “O que houve?”, ela disse, “Você pisou de novo no gato?”, e ele, com uma mão no peito, lamentou. “Pisei…”, ele disse. Adorava aquele gato, mas, às vezes, pensava que o animal estava a mais dentro daquelas paredes.
“Venha.” – ela continuou com bom humor.
“O café está pronto.”
“Espere.”, interrompeu-a. Ele esticou os braços na direção de sua amada e aproximou-se até tocá-la. Tocou primeiro suas mãos e seguiu através de seus braços e de sua silhueta, como se fosse uma trilha que havia sido deixada ali havia tempos para ele.
Seus cabelos estavam presos, e ele explorou os contornos de suas bochechas e de seu queixo. Ela estava sorrindo. Para ele, aquela era uma experiência que sempre fazia como se estivesse fazendo pela primeira vez.
“Bom dia, princesa. Você está linda.”
Jamais havia conhecido mulher mais bonita. Ele sentira-se o maior dos afortunados no dia em que descobrira que ela também o amava.
“Você acha?”, ela disse, e ele foi capaz de ver sua cor. Um beijo marcou o momento.
Ela puxou-o pela mão, levou-o até a mesa da cozinha e, depois, procurou novamente a pia. “Fiz um bolo”. Ele agradeceu e fingiu surpresa, pois tinha sentido o odor de chocolate assim que entrara na cozinha. “Você é incrível.”, ele disse, e ela lhe lançou mais um beijo.
Ela procurou com as mãos o lugar onde tinha deixado o bolo e foi até a mesa. Voltou para pegar a cafeteira e sentou-se junto dele.
“Meu amor…”, ele disse, “Não sei o que seria de mim sem você”.
“Nem eu.”, ela apalpou a mesa à busca de sua mão.
Enfim, o gato reapareceu; atraído, talvez, pela forte luz que vinha daquele aposento.