O rapaz e o cavalo

Textos antigos, 2011

O rapaz está exausto. Ele está há cinco dias sobre um cavalo selvagem, o qual não dá mostras de que vá desistir. O cavalo pula para frente, para trás, dá coices, contorce-se, relincha, mas não consegue derrubar o rapaz. Derrubar-lhe é a sua única saída, pois ele não conhece outra vida se não a de não ter alguém sobre o seu dorso. O cavalo pula para frente, para trás, dá coices, mas não consegue derrubar o rapaz. É um cavalo selvagem, e não há sela entre eles.

O rapaz está exausto. Gotas de suor escorrem por sua face. Seus dedos, emaranhados na crina, começam a doer. Cinco noites e cinco dias assim, pulando para frente e para trás. Cinco noites e cinco dias, sem parar. Mas, de repente, o cavalo para. O rapaz não acredita, e o cavalo busca a água de um rio para beber. O rapaz não compreende e mantém-se atento, mas o cavalo parece mais preocupado em matar a sede do que com ele.

Não adianta. O rapaz tem de se manter em um estado de alerta, agarrado àquela crina. Não sabe ainda se o cavalo desistiu.

Duas horas depois, dito e feito: um cavalo saciado e repousado vale por dois. Ele levanta com violência a sua parte traseira, e o rapaz quase cai. O rapaz agora não tem mais dúvidas, terá de viver durante semanas esta situação para vencer.

E o cavalo pula, pula, pula, dá a entender que se vai acalmar, pula com mais violência, uma violência nova, e continua a pular.

E o rapaz não consegue dormir, não se alimenta, emagrece, mas se mantém agarrado. Sua barba começa a crescer, seus cabelos começam a ficar gordurosos com o suor, e ele continua mantendo a sua mão firme e suas pernas crispadas. Ele tem a sensação de que está há anos ali, mesmo que esteja consciente de que ainda está a viver apenas o início desta provação.

Uma distração, ele quase cai. Ele endireita-se e arranja forças sabe-se lá onde.

O cavalo lança-se de lado contra uma árvore, e o rapaz grita de dor. O cavalo afasta-se da árvore, e o rapaz vê uma enorme farpa encravada em sua cocha esquerda. O cavalo continua pulando, indiferente. O rapaz retira a farpa e lança-a longe.

O cavalo tenta morder a sua perna, dá coices seguidos, e o sangue começa a escorrer da ferida do rapaz. Com uma das mãos, ele rasga a sua camisa e tenta estancar o ferimento.

Durante a noite, o rapaz sente frio, durante o dia, o rapaz sente calor. O cavalo também sente calor, frio e cansaço, mas sua liberdade está em jogo.

“Afinal”, o rapaz pensa, “o que eu estou querendo provar? Por que eu quero roubar o que ele tem de mais valioso?” Mas o cavalo também está tentando roubar-lhe o que ele tem de mais valioso, que é a sua capacidade de não cair.

O rapaz sente uma fisgada no peito; é a primeira vez em que ele não se sente capaz de sobreviver a tanto esforço.

A primeira semana termina. Começa a chover. O rapaz olha para o céu e aproveita para beber água da chuva.

A terra molhada torna-se escorregadia, e o cavalo cai sobre a perna ferida do rapaz. O cavalo levanta-se e sente que o rapaz continua lá, agora agarrado ao seu pescoço.

O rapaz começa a chorar em silêncio, e suas lágrimas misturam-se à água da chuva. Ninguém é testemunha de sua luta, ninguém pode ajudá-lo, ninguém é capaz de salvá-lo. Ele está só, e a única saída possível para ele é manter-se ali, até o final. Sua perna dói, ele sente como se seus braços fossem cair, e sua saúde começa a deteriorar-se.

“Até o final. Até o final.”, ele murmura.

Terá de esperar um mês? Dois meses? Cinco? Esperará. Ele está certo de que, vencendo, conseguirá o prêmio maior, aquilo pelo que tem lutado.

O cavalo pula, pula, relincha, um relincho agudo, amargo, desesperado. O cavalo chora também, de dor, de medo, de raiva. O rapaz encrava com mais força seus dedos na pele do cavalo e não desiste. O rapaz não desistirá.

Uma vez, ainda garoto, o seu pai perguntara-lhe: “O que é que você deseja ser quando crescer?”, “Livre”. Ele respondera. Não é uma questão de roubar a liberdade do cavalo ou não, mas uma questão de alcançar a sua própria liberdade.

O cavalo parte correndo, para bruscamente, parte correndo e corre por toda a planície. Ele para bruscamente e volta a correr, corre em direção a uma colina e, lá em cima, levanta as patas da frente por um tempo interminável. Ele baixa as patas e bate-as contra o solo, diversas vezes, com força, levantando poeira e com o intuito de criar um terremoto, desabar o mundo, retirar o rapaz de seu dorso. Ele relincha, e o rapaz quase escuta a voz de um homem a lançar impropérios. O cavalo volta a correr colina abaixo. Ele pula pequenas árvores, para, dá coices e corre em direção a um precipício, aumentando sua velocidade.

“Não será uma tarefa fácil”, dissera seu pai, “Eu sei, mas eu não vou a parte alguma mesmo”.

Próximo do precipício, a escassos metros, o cavalo para, levanta de novo suas patas dianteiras e relincha. O rapaz range os dentes. A altura do precipício é ameaçadora. Nem ele, nem o cavalo sobreviveriam à queda.

“Vamos!”, grita o rapaz, “Não me vai dizer que ficaste com medo!”

O cavalo também range os dentes e se afasta do precipício. Ele não conseguira assustar o rapaz. O cavalo então volta a correr, corre, corre e para. Ele relincha, relincha alto, contorce-se e, finalmente, cai. O rapaz mantém-se ainda agarrado ao animal.

Cinco minutos depois, o rapaz realiza que há algo de errado com o animal. Suas quatro patas começam a correr no vazio, sua cabeça bate duas vezes no solo, e o cavalo olha para trás e para os lados antes de pousar a sua cabeça no chão. O rapaz livra sua perna do peso do cavalo e corre para apoiar-lhe a cabeça.

“Calma, amigo. Calma.”

O cavalo olha para o rapaz, e lágrimas começam a escorrer de seus olhos.

“Calma. Calma. Eu estou aqui.”, diz o rapaz.

O corpo do cavalo treme algumas vezes, o cavalo solta um suspiro, sua pata esquerda dianteira bate duas vezes no ar, e o cavalo abandona tudo, morto.

O rapaz fica ali, durante horas, a acariciar-lhe a crina. O rapaz também chora.

Quinze dias. Quinze dias a pular para frente e para trás. Quinze dias.

Agora ambos estão livres.