O primeiro erro

Metamorfose, 2022

Estou em cima de um telhado, à espera da minha próxima vítima. Me informaram que ela sairá do Tribunal de Contas às quatro. De onde estou, não tenho como errar. Ainda mais com meu currículo. Nunca cometi erros, e não será com essas condições que irei cometer o meu primeiro.

O edifício histórico está bem na minha frente, do outro lado da avenida.

Olho de novo para a foto e sinto de novo uma sensação bizarra, como se, pela primeira vez, sentisse alguma espécie de sentimento antes da execução de um trabalho. Impossível. A semelhança é grande, mas não deve passar de uma desconhecida.

Deixo de lado minhas divagações e me concentro. Talvez seja um sinal de que esteja a precisar de férias ou de que tenha de começar a pensar na minha aposentadoria.

Já perdi o número de contratos que aceitei e realizei nas últimas décadas. Uma vida dedicada a riscar do mapa políticos, empresários, amantes, maridos, esposas, sócios, empresários, militares, verdugos, juízes ou, como no caso de hoje, testemunhas, sem perguntas de minha parte. Por sinal, um trabalho muito bem pago e sem estresses. Nada de chefes me pedindo para que me apresse para colocar um relatório pronto sobre a mesa ou me dizendo para ter mais atenção com meus horários. Não poderia ter escolhido melhor carreira. Tirando alguns detalhes, minha mãe teria ficado bastante orgulhosa de mim se ainda estivesse viva.

Um carro se aproxima da entrada do Tribunal. Ele para, e quatro homens de terno e óculos escuros saem e se espalham pela calçada e pela longa escadaria do prédio, com a clara intensão de quererem proteger a próxima pessoa que irá sair do prédio.

Três segundos depois uma mulher aparece, acompanhada por um policial, e eu, finalmente, tenho certeza de que não era apenas uma impressão. Trata-se realmente da minha primeira namorada. A foto que tinha recebido não dava jus à sua beleza. No centro da minha luneta, bem no meio do círculo de vidro, vejo aquela que foi meu primeiro amor. Não tenho mais dúvidas. Meu primeiro beijo, primeiro sexo, ali, bem na minha ocular.

– Você é um pouco tímido, não? – Ela me perguntara um dia.

– Um pouco – disse, sorrindo.

– Não seja. Não existe ninguém neste mundo que esteja mais apaixonada por você do que eu.

Nossa relação durou três anos, mas tenho a impressão de que vivemos uma existência lado a lado. Que tivemos filhos, netos e que nosso amor foi capaz de contribuir para a paz mundial. Quando estávamos juntos, estávamos felizes; quando não, estávamos à procura de novos momentos de comunhão. Costumavam dizer que havíamos sido criados para estarmos juntos, tamanha afinidade, tamanha cumplicidade que deixávamos transparecer. E, pra falar a verdade, não lembro quando, onde e nem por que um dia terminamos, mas o certo é que um dia terminamos.

Não posso dizer quanto tempo essas divagações demoraram, mas tenho certeza de que não foi mais do que dois segundos, porque ela, o meu atual alvo, estará a são e a salvo dentro do carro se der apenas mais quatro passos, e eu sei o que significará para mim se ela conseguir dar esses passos. O fim de uma carreira sem erros, o fim de um percurso impecável.

O cérebro de Soraya explode em mil pedaços, e os homens que foram contratados para protegê-la se abaixam atrás do carro e se jogam no chão. Estou tranquilo. Meu plano de fuga foi mais uma vez planejado com antecedência.

O único erro que já cometi na vida foi aquele de um dia me ter apaixonado.