Milkshake

Adriana Lisboa, 2016

Paro na frente do liquidificador e abro uma garrafa de Puccini. Esse será o meu leite. Nasci trágico. Sou assim. Também gosto de Aranjuez, Rachmaninov e Pink Floyd, mas Puccini? Giacomo Puccini? “Nessun Dorma!”, “Un Bel Di Vedremo” e “Recondita Armonia” são, para mim, como o ponto de fuga de Michelangelo, Pollock e Shakespeare.

Já agora uma latinha de Hemingway – ele me inspirou partir do Brasil – e uma dose de conhaque, para não me esquecer de que comecei a beber, regularmente, aos 13.

Cedo demais? Eu consegui fazer sexo pela primeira vez antes de ter conseguido beijar uma garota na boca, o que me aconteceu apenas aos 14. Aliás, aos 14 também fui expulso do Colégio Zaccaria, por causa de uma redação que escrevera.

Eles ainda devem tê-la arquivada.

Cem mililitros de viagem, uma xícara de cigano, três gemas de desenhista, vinte gramas de preguiça, dois dentes de natação, uma colher de kung-fu e mais viagens.

Adoro viajar. Adoro viajar e me sentar numa sombra, pronto para escrever. Adoro dormir em hotéis, tentar me comunicar no idioma de um lugar e andar de trem. Um homem sobre o trem.

Adoro comer também. Adoro comida italiana, japonesa, portuguesa e francesa. Adoro pão de queijo, acarajé e esfirra de queijo.

Vou até o armário e pego a caixa de temperos. Não economizo. Seis pitadas de outras línguas, cinco corações quebrados, quatro seguranças sociais, três anos de faculdade, dois instrumentos musicais e um Caminho de Santiago.

Um serviço militar, ralado.

Uma dose de egoísmo, filantropismo, timidez, extroversão, otimismo, depressão, humildade e presunção; depende do momento.

Despejo alguns grãos de amizade e me apresso para corrigir o erro. Perdi contato com alguns, irritei-me com outros e decepcionei vários. Deixo apenas as sementes que tiveram tempo de crescer.

Um caldo difícil com meu pai e, certo, uma folha de Deus. Uma vez tive um déjà vu fenomenal em Londres e não fiquei surpreso.

Liquidifico um pouco para homogeneizar a bebida e provo o resultado. Não estou satisfeito.

Tento imaginar aquilo que falta.

O ambiente. Exato. Eu não sou apenas eu. Eu sou tudo o que me cerca e o que me cercou. Sou onde nasci, com quem cresci e o que vejo na televisão, mesmo sabendo que somos – quase sempre? – manipulados. Espremo um pouco de tudo isso. Sou a educação que tive e também as decisões que tomei. Sou os valores que construí e os valores das outras pessoas. Sou uma longa estrada. Sou o olhar perdido, os dez colégios em três anos, os trinta empregos, a dúvida, a certeza, o precipício e a asa. Sou o desejo de fazer diferente. Sou minha mãe, meu irmão e meu sobrinho. Sou a família que tenho. A família que esteve aqui, que tem estado e que estará, mesmo sem a minha presença. Tenho sangue espanhol, italiano, português e libanês. Trinta pessoas participavam do meu Natal no Brasil, estou num casamento feliz há dez anos e tenho ao meu lado um filho maravilhoso, Tiziano, que trouxe o amor encarnado para a minha vida. Ele é o meu desejo de um futuro melhor. Ele sou eu.

Amor. Eis o ingrediente que faltava. Amor e algumas gotas de Azul-Corvo, o que dará o perfume à minha bebida.

Agora sim: perfeito.