Existo II
Adriana Lisboa, 2016
<< No princípio era uma ideia, um sentimento, algo transparente e pesado que flutuava entre nós. No princípio era uma conjetura, uma alma sem corpo, um pensamento que não existia e que precisava, urgentemente, amar.
No princípio…
Ele não terminou de ler o meu segundo parágrafo e me colocou de volta na estante, sem olhar para trás. Palhaço. Sabia que mais cedo ou mais tarde chegaria o meu momento, e, de qualquer maneira, estávamos para fechar.
“Palhaço.”
– Então? O cara não gostou do que leu? – O Idiota perguntou-me, sarcástico.
– Cale-se.
– Ele deve ter pensado que se tratava de uma agenda. – Os Irmãos Karamazov começaram a rir.
Eles não faziam por mal – era a natureza deles –, mas lamentava, diariamente, a proximidade daqueles russos.
– O que está acontecendo? – Ricardo III gritou da outra estante.
– Oh, merda… – murmurei. Das obras do Shakespeare também.
– Alguém deu uma folheada no nosso amigo aqui e o colocou de volta na estante. Ele deve ter se esbarrado com um de seus advérbios.
– Até você, Anna?
– Ahahah! – As Alegres Comadres de Windsor gargalharam.
As noites mal dormidas eram raras, mas tinham qualidade.
– Espero ansiosamente que você se recupere rapidamente.
– Quer saber? Vaffanculo!
Ninguém ainda me havia lido e até aquele momento só tinha duas olheiras. Tinha sido fabricado para iluminar. Era louco, paginado, era rei. Folheasse-me rápido que virava vento. O assunto pouco importava. Com certeza, interessaria alguém.
Cedo me haviam trazido para a vida. Fora colocado dentro de uma caixa e levado para uma livraria. Havia ido para perto de meus irmãos. Grandes, pequenos, ilustrados, fascículos, educativos, caros e de bolsos. Até mesmo primos estrangeiros. Certo que não conseguia fazer amizade com todos, mas não havia um, um código de barras, que não merecesse o meu respeito.
Tudo bem. Naquele mesmo dia, um pouco mais cedo, a menina que me havia escrito viera nos visitar. Ela assinara vários dos meus exemplares, dera umas voltas e depois partira, e todos sabiam que era por isso que eu estava tão suscetível aos comentários daquele imbecil.
Ela não chegara nem mesmo perto de mim.
***
O sol atravessou a vitrine e aqueceu os mais afortunados.
O gerente também chegou, abriu a portas e começou a nos alinhar, um por um.
– Eu mesmo irei comprar as flores. – Miss Dalloway disse.
Olhei para os lados e vi que, lentamente, todos começavam a acordar. Lentamente não, pouco a pouco.
Tínhamos uma vida tranquila. Verdade que, desde que os leitores eletrônicos chegaram, havíamos perdido um pouco nosso lugar, mas continuávamos orgulhosos daquilo que éramos e sabíamos que os românticos ainda nos preferiam, que seríamos sempre melhor que um par de “bytes and bites”.
O cheiro era nosso trunfo. O cheiro, a textura, o peso e a sensação que todos experimentavam quando nos tinham entre as mãos. Éramos a história. Éramos a primeira herança e seríamos para sempre a grande prova da evolução. A roda bem havia ajudado, mas graças a nós alguns povos não a tiveram de descobrir uma segunda vez.
O primeiro cliente entrou, distraído. De repente, algumas crianças passaram por mim. Uma cliente entrou, mais um cliente entrou, e a vendedora também chegou. Alguém me ignorou. Uma cliente levou o meu vizinho para longe, e tive certeza de que sentiria saudades dele.
“Adeus.”
Uma cliente passou perto de mim. Um cliente também passou perto de mim, alisou a minha aba e esbarrou em Dorian Gray, que caiu no chão com um barulho seco.
“Ui.”, pensei. Deve ter doído. O homem se abaixou, pegou o jovem inglês nos braços e o recolocou na estante, mas era visível que ele, depois da queda, ficara danificado. “Coitado.”, murmurei. Esperava que não o colocassem de lado. Afinal, o seu conteúdo ainda estava intacto.
Eram estranhos os critérios que nos faziam ou não partir. De um lado: o nosso lugar de destaque, na mídia, se tínhamos um bom acabamento, um bom resumo na quarta capa, quem havia escrito o prefácio, se estávamos impecáveis, se a nossa capa era bonita, se o autor era conhecido, se éramos um clássico – já que os leitores sempre se sentiam mais cultos quando compravam um clássico –, se éramos novidade – já que os leitores sempre se sentiam mais saciados, mesmo que fosse por alguns momentos, quando compravam uma novidade –, ou se tínhamos um bom preço; de outro: se éramos impressos a pedido, se dependíamos do boca a boca, se nossa gráfica havia economizado, se tínhamos uma folha cuja ponta havia sido dobrada, se éramos discretos, se nosso autor era desconhecido, ou se tínhamos um preço elevado. Não adiantava. O estilo não era o principal. Até mesmo o assunto era mais importante, já que alguém que gostasse de mistério pensaria com frequência que não teria nada a aprender dentro de um romance ou com uma coletânea de poesias. Éramos, enfim, um produto de consumo, muito diferente daquilo para que havíamos sido criados.
Sonhava que criassem um novo tipo de livraria. Nenhum título, nenhum nome de autor, capas brancas, sem orelhas e todos alinhados à mesma altura e numa estante circular. Isso sim seria nos dar a mesma oportunidade. O cliente entraria, pegaria um de nós ao azar e leria algumas de nossas linhas; se quisesse continuar a sua leitura ou não dependeria dele. Seríamos escolhidos apenas por uma inexplicável e deliciosa atração.
– Outro cliente. Aposto que veio comprar um dicionário. – o Jogador me trouxe de volta à realidade.
Saí do meu devaneio e tomei consciência de que o tal cliente vinha direto na minha direção, com passo firme. Ele esticou as duas mãos, sorriu, e eu prendi a respiração. Ele sabia sem nenhuma dúvida aquilo que queria. Ele folheou minhas páginas, respirou o vento que nascera e me levou até o caixa, não me dando nem tempo de me despedir de meus – poucos – amigos.
Uma nova vida começava.
Em casa, fizemos amor pela primeira vez. E, nos meses a seguir, ele me leu uma, duas, três vezes, me colocou na sua mesinha de cabeceira, me leu de novo, me leu no ônibus, no jardim, me colocou na sua estante, me pegou de novo para ler e se negou a me emprestar. Havia me transformado na sua melhor companhia, no seu ponto de referência. Claro que passei alguns dias sem vê-lo, sem ver suas mãos, seus dedos, seus olhos, mas ele sempre voltou à minha procura, reencontrando-me a cada vez como se tivesse reencontrado um velho amigo, depois de muito tempo. Ficamos para sempre ligados, encontrando, a cada nova manhã, um novo renascer. >>
– Pronto. Eis a minha história.
– Waow. – minha versão de bolso disse.
– Agora vá dormir. Está ficando tarde.
– Mas…
– Sem mais nem menos. Amanhã podemos continuar.
Assim, mesmo que um dia morresse, que alguém me levasse para um sebo, me vendesse por uma pechincha, não me importaria. Teria tido uma boa vida, certo de que, mais cedo ou mais tarde, alguém iria querer sempre de novo me ler, ou ao menos conhecer a minha história.
Assim, continuaria vivendo, sem medo de nada. Nem mesmo das cinzas.