Existo I

Adriana Lisboa, 2016

Imprimiram-me. Cheiro a novo. Ninguém ainda me leu e até agora só tenho duas olheiras. Fabricaram-me para iluminar. Sou louco, sou paginado, sou rei. Folheie-me rápido que viro vento. O assunto pouco importa. Ele, com certeza, interessará alguém. Fui árvore, virei celulose e agora sou letras. Sou parágrafos e páginas. Sou índice, apêndice e prefácio. Sou aquilo que chamam “melhor presente”. Sou mais eu.

Cedo vim para a vida. Colocaram-me dentro de uma caixa e me trouxeram para uma livraria. Vim para o meio de meus irmãos. Eles são grandes, pequenos, ilustrados, fascículos, educativos, caros e de bolsos. Há até mesmo livros estrangeiros.

Um dia a garota que me escrevera veio nos visitar. Ela se sentou, autografou e depois partiu, e eu tive certeza de que aquilo significou um adeus.

Às vezes alguém me folheia e lê algumas de minhas páginas, mas logo eu volto para a estante e não perco as esperanças. Mais cedo ou mais tarde chegará o meu momento.

Algumas crianças passam por mim, correndo.

Alguém lê um dos meus parágrafos e me mostra os dentes, sarcástico. Esse ainda tem muito a aprender.

Mais crianças.

Tenho tido uma vida tranquila. Verdade que, desde que os leitores eletrônicos chegaram, nós perdemos o nosso lugar no mundo. Alguns românticos ainda nos preferem, mas esta sociedade tem-se transformado em algo, digamos, demasiado “bites and bytes”.

Uma pessoa me ignora, alguém toca a minha aba, um cliente compra o meu vizinho – sentirei falta dele – e um dicionário cai no chão, por acidente. Deve ter doído. Ele é recolocado na estante, mas agora está danificado. Coitado. Espero que não seja colocado de lado. Afinal, o seu conteúdo ainda está intacto.

E, assim, vivo.

Não sei qual será o meu destino, mas espero que ele seja aquele pelo qual mais tenho esperado.

Um dia um leitor entrará na loja, virá até mim e me retirará da estante com as duas mãos. Eu serei o tesouro que ele tem procurado. Ele me levará para o caixa, pedirá à vendedora que me embrulhe e me abrirá em casa, como se se tivesse comprado o seu melhor presente. Ele me lerá uma, duas, três vezes, me colocará na sua mesinha de cabeceira, me lerá de novo, me lerá no ônibus, no jardim, me colocará na sua estante, me pegará de novo para ler e nunca irá querer me emprestar. Eu serei o seu melhor amigo, o seu ponto de referência. Amarei-o e serei amado por ele. Claro que passarei alguns dias sem vê-lo, sem ver as suas mãos, seus dedos, seus olhos, mas logo ele virá de novo à minha procura e me reencontrará como se tivesse encontrado uma novidade, como alguém que se esbarra com um velho amigo depois de muito tempo. Estaremos para sempre ligados. E, quando ele for se mudar, eu estarei na sua caixa de papelão especial – aquela que ele não ousará entregar para a agência de mudanças –, para, logo, encontrar com ele um novo lar, uma nova estante, um renascer.

Assim, mesmo que ele um dia morra, que eu termine em algum sebo, que eu seja vendido pelo seu sobrinho por alguma pechincha, não me importarei. Eu terei tido uma boa vida, certo de que, mais cedo ou mais tarde, alguém irá querer de novo me ler.

E que venham as cinzas! Jamais terei medo.