Don Quijote ecologista
Textos antigos, 2011
Faz tempo que quero escrever sobre a minha aventura com turbinas eólicas.
Em 2007, depois de quatro meses desempregado em Lisboa, comecei a dar tiros por toda a Europa. Como havia recebido a nacionalidade portuguesa, Espanha, Inglaterra e Itália deixaram de ser apenas um sonho. Continuava limitado aos meus conhecimentos informáticos, mas faria tudo para arranjar um trabalho completamente diferente. Os idiomas, por fim, começaram a não ser mais um problema, e qualquer mudança de morada, para mim, nunca o foi.
Ligaram-me da IBM da Bulgária, mas achei que a Bulgária não entrava nos meus planos. Mandei alguns currículos para Londres, fiz uma entrevista on-line para Madrid e fiquei fascinado pelo seguinte anúncio: “Contrata-se pessoas com bons conhecimentos de inglês e sem medo de altura”. Claro que fiquei tentado. O anúncio era para trabalhar com turbinas eólicas. Pagavam bem, era um trabalho de ideologia, e eu, enfim, não estaria mais enclausurado dentro de um escritório. Uma foto de um moinho moderno ilustrava a oferta, o que me lembrou do Don Quijote.
Tudo foi muito rápido: entrega de documentos, tirar atestado médico e fazer uma entrevista em inglês, mas ainda tive de esperar dois meses para ser chamado.
Estava na Suíça – havia passado o Natal e o Ano Novo empanturrando-me –, quando o telefone tocou. Teria de me apresentar dois dias depois na pequena cidade de Salles-Curan, no sul da França, a alguns quilômetros de Millau.
Nota: Millau abriga a ponte mais alta do mundo, aquela da qual fizeram fotos onde parece estar flutuando sobre as nuvens.
Verdade! Até o momento da chamada, eu não sabia aonde iria trabalhar. Minha empresa tinha funcionários alocados na Grécia, na Escócia e na Turquia, e calhou-me a França.
O TGV que peguei parou em Montpellier, fiquei contrariado por descobrir que não havia ninguém me esperando de carro como o combinado e tive de fazer outras três horas de trem. Encontrei-me, então, em Millau, com o grupo, jantamos e enchi-lhes de perguntas. Éramos quatro, sendo que dois já tinham alguma experiência.
Cheguei ao campo de turbinas às 6 horas da manhã do dia seguinte e fui apresentado ao grupo de dinamarqueses, franceses e holandeses. Penso que noventa por cento das pessoas fumavam. “Briefing” e depois passei a primeira manhã inteira tentando arrancar a grade que separava os dois lugares de uma de nossas duas carrinhas da parte traseira. Um dos patrícios que trabalhava comigo havia fechado o carro e deixado as chaves na ignição – a sorte que ele tinha deixado a porta de trás aberta. Confesso que comecei a pensar que tudo aquilo seria mais fácil do que havia pensado e até mesmo divertido, mas não foi fácil. Descobriria, mais tarde, o que significa direito do trabalhador. Lá, não havia algum.
As jornadas eram de onze horas e não tínhamos direito a alguma pausa. Pausas eram feitas discretamente. Como é fácil imaginar, as turbinas ficam no alto das montanhas. Tive de trabalhar durante onze horas em um lugar com fortes ventos durante o inverno com chuva e até mesmo neve e sempre do lado de fora, e, pra completar, o almoço era um descanso de apenas quinze minutos com a mão suja de lama. Usamos o canivete de um colega, o qual era utilizado para todos os serviços mecânicos, para cortar os pães e nos empanturrarmos de mortadela. Além disso, não havia algum bar, algum banheiro, alguma máquina de café ou de água no raio de quilômetros.
Na primeira noite, quando fiquei sozinho no quarto, chorei e pensei desistir de tudo.
Quando comecei a considerar-me com alguma experiência – a partir do segundo dia –, levei minha própria água e o meu almoço já preparado, mas, no terceiro dia, descobri que o meu almoço havia partido com o carro para o mecânico e que estaria de volta apenas à noite.
– Ai o caral…
Meus colegas eram mestres na arte da retórica. Conseguiam dizer as palavras fod… e caral… em todas as situações e com variações inimagináveis. Confesso que durante dois anos eu continuei dizendo essas palavras, tamanha foi a contaminação.
Amiga, amigo, eu estava no meio de um canteiro de obras. O que você quer que eu diga? Só tinha cara sem educação naquela joça.
Mas foi impressionante segurar uma daquelas hélices com uma corda. Eu lá embaixo, ela lá em cima – pendurada em uma grua –, sendo encaixada no nariz da turbina, e eu procurando evitar que ela tocasse na grua. A corda fazia até uma curva, de tão alta. Disseram-me naquele momento que, se a hélice tocasse na grua, guindaste, turbina e hélice cairiam como brinquedinhos de isopor sobre a minha cabeça. E eu sozinho, segurando aquele fod… do caral… de milhares de euros. Eu! Só eu! Só eu contra aquele terrível dragão! – fui apenas interrompido para bancar o intérprete: um caminhão precisava passar e procuraram-me para dizer ao motorista em francês que ele teria de esperar ainda vinte minutos, até que terminássemos de aparafusar a hélice.
Também tínhamos direito a uma casa de dois andares. Cada um com o seu próprio quarto, banheiro e acesso ilimitado à internet. Contudo, na primeira noite mesmo, descobrimos que estávamos no meio do nada e que a internet não havia sido instalada; não tínhamos sinal nos celulares e apenas utilizaríamos aquela mansão pra dormir. E, como acréscimo, meu chefe não gostava de cozinhar. Demorei dois jantares para perceber que eu teria de chegar e jantar direto, sujo, se eu não quisesse cozinhar pra pessoas que jamais cozinhariam para mim.
E, antes de dormir, eu ainda esticava minha mão para fora da janela do meu quarto, com um frio de lascar, pra tentar pegar algum sinal no celular e pagar caro pacas cada chamada.
Na manhã do terceiro dia estava tudo branco. Ver neve ainda é sonho de muitos brasileiros, mas não há graça alguma ver às cinco horas da manhã que nevou forte e que você vai ter de trabalhar com tais condições. Naquele dia, aliás, uma hélice quebrou ao meio, enquanto estávamos tentando transferi-la de um dos caminhões de transporte para suportes que haviam sido feitos com feno. O gelo havia dado cabo de suas artérias. Sim, eu disse feno. Ao redor, apenas vacas e bois. Acho que foi nesse dia que um dos carros atolou e que tivemos de passar mais de uma hora tentando retirá-lo de uma mistura de neve, bosta e lama.
Os dois carros que tínhamos eram inúteis. Ninguém devia sair do campo, e, quando saía, era pra buscar algum equipamento. E comprar comida também não era fácil, pois, quando deixávamos o “escritório”, à noite, os mercados da pequena cidadezinha de Salles-Curan já estavam fechados. Foi no segundo dia que tivemos de pedir para sair mais cedo para não morrermos de fome.
– Fod…
Não pude deixar de cair na gargalhada ao saber que o meu chefe costumava jogar gatos do alto da falésia de Nazaré – ninguém faz isso! –, e, quando perguntei aos meus colegas o que eles fariam de mais interessante com a grana que receberiam, a resposta mais inteligente que recebi foi a do outro novato, uma espécie de Sancho Pancho, que disse que usaria o seu primeiro salário para comprar uma nova tarântula pro seu aquário.
***
Todos peidavam durante os “briefings”. Fiquei realmente decepcionado quando o grande chefe todo-poderoso, um dinamarquês de quase dois metros de altura e de cem quilos, interrompeu seu discurso e levantou a perna direita para soltar um grande peido.
– I’m sorry.
Um contêiner de 40 metros quadrados, 30 homens, fumaça de cigarro que não acabava mais, tudo fechado e peidos. Eu só ficava torcendo para que aquilo acabasse logo para que eu pudesse voltar para o frio.
Em poucas palavras, a coisa funciona assim: a companhia de luz faz um buraco no chão com todas as ligações necessárias, e a empresa montadora descarrega as três hélices, o nariz, o motor e os três tubos que formam o corpo perto do buraco. Monta o nariz, o motor, o nariz no motor e as pequenas partes como o elevador e as camisas das hélices, para, em seguida, colocar os três tubos em pé, o motor lá em cima e as três hélices. Se bem me lembro, cada turbina demora três semanas no máximo para estar pronta, se o tempo ajudar. E, como um campo contém sempre mais de 20 turbinas – 40, 70… –, enquanto um nariz está sendo montado em um local, uma hélice está sendo encaixada em um nariz em outro ponto qualquer.
Até que no quarto dia tive de abandonar aquela experiência.
No primeiro dia, o frio era insuportável, mas eu não podia desistir. No segundo dia, o frio continuou a arrancar-me a pele, mas eu não podia desistir. No terceiro dia, no dia em que nevou, não foi o mais frio, mas não foi o menos exaustivo. No quarto dia, o frio voltou pior, e fui chamado sozinho para descarregar dois motores, embaixo da supervisão passiva de um jovem francês administrador capoeirista e de um senhor gordo manipulador de equipamentos.
Apoiei a escada no primeiro motor, peguei uma pesada corrente utilizada para tal serviço e subi na primeira estrutura para esperar pelo gancho de um pequeno guindaste e, nesse momento, com um vento e uma chuva fina batendo na minha cara, com os dois senhores lá embaixo decidindo qual seria o melhor lado para se aproximar com o guindaste, sentei-me lá em cima e senti-me feliz, até mesmo completo, por estar ali. Consegui não sentir frio e senti-me realmente livre. Lembro-me de ter sorrido. Sei que estava lá havia pouco tempo, mas a ironia é que eu poderia ter demorado dez anos para ter tido aquela sensação. Eu conseguiria sobreviver àquele inferno; pensamento que – acredito – me tirou daquele lugar, pois, assim, eu não precisava mais estar ali.
Para descarregar o segundo engenho, quando levantei novamente a corrente para levá-la até à plataforma que fica na parte de cima do motor, senti meus músculos das costas rasgarem e tive a certeza de que era o fim da minha contribuição. Não sei se aquilo foi uma reação particular de meu corpo ou se foi uma consequência óbvia diante de todo aquele frio, mas sei que não consegui mais levantar o braço sem gritar de dor, movimentar o pescoço e tive de passar a sexta-feira do meu aniversário em casa, sozinho, aproveitando, enfim, a mansão.
– Ça va? – perguntou-me o parisiense apaixonado por capoeira.
– Ça va, ça va – menti.
Não voltei mais ao campo e passei três meses recuperando-me da distensão. Ganhei uma boa grana com apenas quatro dias, mas, após alugar um carro para sair de lá, pagar um hotel para mim e para minha esposa em Montpellier, comer e comprar dois bilhetes de ônibus de volta para Lisboa, não sobrou muito.
Valeu a pena?
Se você leu a minha crônica “Aventura Siciliana”, sabe que valeu. Um mês depois arranjei um emprego em Paris e cá estou, na França, desde 2008.
Mas por quê? Pra quê? Apenas pra ser capaz de dizer aquilo que eu vou dizer aqui? Também.
Considere que a vida é como uma turbina eólica girando à nossa frente, rapidamente e sem dar alguma paradinha. Você poderá passar a vida inteira observando-a, com receio de que as hélices lhe cortem, ou você poderá começar a aprender a não ter mais medo e pular na direção dela.
Quando você encontrar uma pessoa que desperte em você algum sentimento de amor, ou um trabalho interessante e difícil, não deixe de tentar atravessar o que você está sentindo, essa oportunidade única. Sinta, lance seus sentimentos em direção da turbina com toda sua paixão, sem mágoas, certo de que há uma grande possibilidade de que você nunca mais veja Dulcinéia. Diga-lhe que a ama nem que seja para ser escutado por apenas um segundo, pois você terá apenas um segundo e deverá decidir com quais palavras você irá ser recordado.
– Eu te amo.
Hélice.
Hélice, hélice, hélice, folhas de pontas agudas ao vento, como lanças em riste, a atravessarem meu coração.