Bom apetite, príncipe

Metamorfose, 2022

Joana guardou a caixa vazia no bolso do avental, colocou um dente de alho descascado no pilão e continuou a pilar. O marido dizia que feijão bom tinha que estar misturado com um alho cru e que, além disso, alho cru fazia bem pra saúde. Ela não. Ela evitava alho. Reclamava do gosto, do odor e do cheiro que ficava na mão. No começo, havia experimentado a mistura e aprovado, mas, com o passar do tempo, terminara por voltar a comer o seu feijão sem o tal bolbo.

Desligou o fogo do feijão e pegou um dos pratos brancos do armário. Quatro colheres de arroz, quatro colheres de feijão sobre o arroz, raspou todo o conteúdo do pilão em cima do feijão e misturou tudo, criando uma massa deforme e fumegante de pasto. O cheiro e a imagem lhe desenharam uma careta na cara. Um bife acebolado e, ao lado do bife, farofa. Ela segurou o prato com as duas mãos e saiu da cozinha, após apagar a luz.

Carvalho estava sentado à mesa na frente da televisão. O time pelo qual estava torcendo perdia. E nem piscou quando a mulher se aproximou, colocou o prato entre os dois talheres que já estavam na mesa e lhe disse “bom apetite”. A única coisa que fez foi dizer-lhe para que trouxesse outra cerveja.

O telefone tocou, e ela deu dois passos na direção do aparelho, mas ali ficou. Ele havia virado o rosto na direção dela, e ela se congelou. O som era estridente. Eles permaneceram se encarando durante algum tempo até que o telefone parou de tocar. Ele voltou a olhar para a televisão, e ela, depois de uma pausa, foi para a cozinha.

Uma vez a nova garrafa de cerveja aberta nas mãos do marido, Joana foi até o banheiro, fechou a porta e suspirou. Ela se olhou no espelho e passou o indicador em cima do inchaço que tinha aparecido no olho. Reparou pela primeira vez que o pulso esquerdo estava com algumas marcas de dedos. Então, com uma escova de cabelo, penteou a juba, colocou um pouco de perfume no pescoço e para terminar passou um batom na boca. Os lábios ficaram vermelhos.

Quando Joana voltou para a sala, o marido já tinha quase acabado de comer. Ela pegou um porta-retratos que estava no chão e colocou-o de volta na biblioteca. Ela também se sentou à mesa, olhou para o prato e perguntou ao marido se este queria sobremesa. Ele mastigou a última garfada, terminou a cerveja, bocejou e disse que não, que estava cansado e com dor de cabeça, que aquele time era uma merda e que iria para cama mais cedo. E assim foi, sem dizer mais nenhuma palavra, desaparecendo na escuridão do único quarto da casa, sem mesmo passar pelo banheiro.

Ela olhou para os lados, levantou-se e desligou a televisão. Ela levou o prato e a garrafa de cerveja para a cozinha e acendeu de novo a luz. Colocou a garrafa numa bolsa cheia de cervejas vazias, colocou o prato e os talheres que o marido havia utilizado na máquina de lavar e jogou a caixa vazia no lixo. Tarja preta. Ela, então, olhou para o céu através da janela, viu que a noite estava estrelada e apoiou-se na pia. Joana estava sorrindo.