Basquiat

Adriana Lisboa, 2016

– No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era quadrada, branca e vazia; e havia um estúdio sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das tintas. Disse Deus: haja cor. E fez-se cor. Viu Deus que a cor era boa; e fez separação entre as cores com um prisma. E Deus me chamou de mulher, e você de homem. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.

– Por que ele começou com você? – o homem perguntou.

– Porque eu estava do lado esquerdo da tela. – a mulher respondeu.

– Você ainda não estava aí. O lado esquerdo estava vazio, e ele resolveu pintá-la antes de mim.

– Eu já estava aqui muito antes do início. Ele me imaginara primeiro antes de ter começado a nos pintar, não você.

– Vocês estão tendo um caso!

Jean Basquiat largou o garrote no chão e fechou os olhos. Não conseguiria segurar mais nenhuma cor. Não poderia nem mais separar a obra do criador.

Como havia chegado ali? Quem um dia teria imaginado que aquele bebê criado com tanto amor um dia teria sua foto estampada dentro de uma Larousse? Quem havia despejado tanta tinta sobre sua cabeça naquela pia batismal? Substantivos e adjetivos deram lugar a números, e sua própria vida foi experimentada ao extremo.

“Warhol.”

Como havia chegado ali? Quem o havia chicoteado com um pincel durante a sua infância? Quando havia perdido, enfim, o medo da claridade?

Basquiat se sentou na beirada do sofá, abriu os olhos e contemplou o infinito.

Prisma. Tudo.

O homem e a mulher pararam de discutir e olharam para ele, à espera. Será que ele os daria, afinal, por terminados? Era um exercício constante em suas vidas, imaginar se estavam ou não prontos.

Ao menos já se consideravam belos.

Dou outro gole no vinho e fico com vontade de apagar este texto. Não tenho certeza de que esteja bom. Talvez seja melhor começar do zero. Talvez seja melhor escrever sobre um quadro da Norah Borges.

– Não faça isso! – o homem grita.

Jean Basquiat arregala os olhos e olha para seus dois personagens.

– Quem disse isso? – ele pergunta, com voz melosa.

– Eu! – o homem responde.

– Que isso… – Basquiat diz.

– Queira me desculpar. Não estava a falar com você, estava a falar com o escritor.

– Como? – paro de digitar e levanto as mãos.

– Você não pode fazer isso! – o homem insiste, e Basquiat e a mulher me encararam também.

Dou outro gole no meu vinho e olho para os lados.

“Que porra é essa. Claro que posso.”

– Não! Não pode! – desta vez foi a mulher a gritar.

– Então eles podem ler meus pensamentos? – murmuro.

– Claro que podemos!

Solto um suspiro.

– Vamos deixar uma coisa clara. – falo entre os dentes – O texto é meu, e faço com ele o que quiser. Aconselho-os a se comportarem. Esta discussão irá apenas precipitar as coisas.

Não. Façamos o seguinte. Você escolhe. Sim. Você. Cabe a você decidir se este texto deve ou não existir. Digo: decidir se ele deve continuar ou não a ser lido, já que escrito ele já foi e sobre isso não a nada que possa fazer.

(pausa para que você decida se irá ou não continuar a ler este texto)

– Excelente! – grito e as pessoas do restaurante olham para mim – Este texto não deve estar assim tão mal. Afinal, você resolveu continuá-lo, talvez curioso com seu desfecho.

Com a mão esquerda, Jean Basquiat apertou duas vezes uma bola de tênis invisível, e o orgasmo chegou como um trem bala. Demasiado conhecimento. A solidão daquele estúdio lhe contou todas as regras do universo, cada detalhe, até a exaustão.

Sua cabeça se inclinou para frente, e ele repousou o corpo no chão, morto.

Até os anjos costumam sentir vertigens diante do infinito.