A fábula do buraco

Textos antigos, 2011

O escritor encostou sua caneta na folha em branco. Decidiu, por fim, escrever a história de um amigo, de um amigo a quem não via havia muito tempo. Ele, então, começou assim:

Era triste ver um antigo companheiro naquela posição engraçada, agachado e sujo de terra. Ver que, depois de tudo o que haviam vivido juntos, ele agora se resumia àquilo: um louco a cavar um buraco com suas próprias mãos.

Começara aquele espetáculo havia três dias, informou o empregado da quitanda, e, por causa do tipo de terreno que era, por causa da chuva que havia caído durante a noite, ele havia avançando ainda muito pouco.

Carlos, cuja presença não fora notada, sentiu um sentimento de culpa pelo que estava acontecendo.

– Ah, meu irmão. Por que eu lhe abandonei à sua própria sorte?!

E, pela amizade que continuava sentindo, pela memória de tantos bons momentos, ele resolveu tentar ajudar o seu amigo. Se existisse alguém capaz de trazer-lhe de volta à realidade, mesmo a custo dessa mesma amizade, esse alguém seria ele.

– Amigo!

– Carlos! Quanto tempo!

– Então?! Você está querendo chegar ao Japão?!

– Que isso, meu irmão?! Você está pensando que eu fiquei louco?! Todo mundo sabe que o interior da Terra é cheio de magma e que se eu fizesse isso eu iria queimar-me! Eu estou indo mais é para a Itália! Primeiro, eu vou cavar para baixo e, depois, quando as coisas começarem a aquecer, eu vou mudar de direção e ir direto para a Europa, cruzando por debaixo de todo o oceano Atlântico.

Alguém bateu na porta do escritório e interrompeu seus pensamentos.

– Entre! – disse o escritor.

Era sua esposa. Viera avisá-lo que o jantar estava pronto.

– Meu anjo, eu já vou. Deixe-me apenas terminar um pensamento.

E, com a compreensão típica daqueles que amam um artista, ela sorriu e retirou-se.

– Onde eu estava? – murmurou – Ah, sim…

– Para a Itália?!

– Exatamente, caríssimo! Algum problema?

– Amigo, chegue aqui.

Ele subiu até à beirada do buraco e sentou-se ao lado de Carlos. Não faria mal algum se ele fizesse uma pausa.

– Diga lá.

– Isso é impossível, rapaz! Você nunca conseguirá realizar tal projeto! Mesmo que você nunca parasse de cavar, você morreria antes de ter alcançado sequer um quilômetro! E você nem está usando uma pá, por Deus! Venha comigo e esqueça isso! Vamos dar um pulo até à minha casa, você irá tomar um banho, a gente irá achar um rumo pra sua vida e pronto! Não desperdice a sua existência numa loucura dessas! Eu sei que eu não tenho estado muito presente nos últimos tempos, mas eu prometo que isso não irá acontecer novamente.

Um silêncio profundo formou-se entre eles. Carlos poderia ter suas razões, mas nenhuma amizade é mais forte do que um sonho.

– Carlos, eu percebo o que você está tentando fazer por mim e agradeço-lhe do fundo de meu coração, mas, se você me permite, eu vou continuar com a minha tarefa. Obrigado por estar tentando dizer-me o que você pensa ser o melhor para mim, mas o melhor para você não é, necessariamente, o melhor para todas as pessoas. – ele fez uma pequena pausa e continuou – Eu sei que esse buraco é uma tarefa difícil, Carlos, mas foi assim que eu encontrei um objetivo para a minha vida.

– Você conseguirá ser feliz mesmo sabendo que você não irá à parte alguma?

–A felicidade não está numa realização, mas no prazer de poder acordar todas as manhãs e sentir um amor por aquilo que está fazendo. Eu amo esse buraco, Carlos! Ele é minha vida! E não se preocupe! Você nunca será responsável pelas minhas opções!

– …

– Mas sabe – ele continuou – a ideia da pá não é de toda má!

O escritor parou de escrever e encostou-se em sua cadeira. Bastava, por enquanto. Poderia ficar ali durante horas, mas não queria deixar que sua esposa jantasse sozinha. Ele, afinal, também a amava.

E pensar que ele, o próprio Carlos, um dia iria morar na sonhada Itália de seu amigo.

Ele levantou-se e deixou sua caneta sobre o seu texto. Saiu do cômodo e portou consigo a sensação que sentia quando encontrava algum texto que lhe inspirasse vontade de continuar.

A noite caiu na pequena vila toscana.

Eram três horas da madrugada quando um rumor passou a ecoar nos aposentos daquela casa. Iniciou como um grilo à distância, soando entre pausas, porém, mais tarde, começou a lembrar o arrastar de um móvel, insistente, com o mesmo ritmo de um pêndulo, para surgir, após mais alguns minutos, o som inconfundível de terra sendo escavada.

TOC. TOC. O som surdo de ferro batendo no piso de madeira daquele escritório teria sido escutado se alguém ainda estivesse acordado.

Quem é que estivesse ali embaixo começou a bater diversas vezes e com mais força com o que seria, talvez, uma caneta, até que, após ceder e ceder, a madeira quebrou e explodiu em mil e uma lascas. CRASH.

Do buraco surgiu uma cabeça suja de terra, mas não tão suja a ponto de esconder o sorriso de sua face.

Seu amigo havia chegado à Itália.

O escritor parou de escrever e encostou-se em sua cadeira. Bastava, por enquanto. Poderia ficar ali durante horas, mas não queria deixar que sua esposa jantasse sozinha. Ele, afinal, também a amava.

E pensar que ele, o próprio Carlos, um dia iria morar na sonhada Itália de seu amigo.

Ele levantou-se e deixou sua caneta sobre o seu texto. Saiu do cômodo e portou consigo a sensação que sentia quando encontrava algum texto que lhe inspirasse vontade de continuar.