
CAPÍTULO 1
A pedra bruta
“A praia de Botafogo regurgitava; era dia de regatas. Por todo o cais o povo apinhado olhava para o mar coalhado de barcas, palpitante de luz. Nas arquibancadas, à beira de água, as toaletes claras das moças despertavam a ideia de grandes flores variegadas, desabrochadas ao sol, e, na rua, carros e bondes arrastavam-se cheios, vagarosos, por entre a multidão. Mas a beleza era o mar, cuja superfície apenas enrugada de um azul violento, toda se paletava de escaminhas de ouro. Andavam pelo terceiro páreo. Baleeiras velozes, bem remadas, demandavam as balizas na ânsia da vitória; outras, em repouso, deixavam-se balouçar pela água, molemente, enquanto lá no alto as gaivotas espalmavam as asas tranquilamente.
– Belos rapazes! – observou Adolfo Caldas, olhando com entusiasmo para a tripulação das baleeiras.”
(A Intrusa – Júlia Lopes de Almeida)
Eram três da tarde daquele verão de setenta e nove. Os dois irmãos brincavam no Aterro do Flamengo, na zona sul do Rio de Janeiro, numas casas de cimento coloridas que ainda hoje existem lá. Com seus pais a uma certa distância, corriam ambos de um lado para o outro, e ao mesmo tempo tentavam arranjar novos coleguinhas. Realizavam o que só uma criança sabe fazer na sua perfeição: ser feliz e viver apenas o momento. Faziam parte de uma classe média que ainda não estava em decadência – pelo menos através da visão repleta de esperanças daquele jovem casal.
Alexandre, o irmão mais novo, escorregou e bateu com o joelho no chão, e para deleite dos seus pais, Ricardo, dois anos mais velho, aproximou-se perguntando ao irmão se tudo estava bem. Devia estar, porque não demorou muito e ambos voltaram correndo para as suas atividades infantis. Depois de mais algum tempo, os seus novos amigos começaram a ir embora, para decepção dos dois, até que foram eles que, desanimados, resolveram voltar para perto dos seus pais. Como todas as crianças, eles também preferiam que as coisas que estivessem correndo bem nunca terminassem.
Foi aí que Alexandre viu, nas mãos de um vendedor ambulante, um brinquedo que chamou imediatamente sua atenção, um brinquedo que jamais imaginou existir. De um pequeno tubo de plástico rosa, saía uma espécie de canudo amarelo com um pequeno aro na ponta que, quando soprado, soltava dezenas, talvez centenas, de bolas de sabão! A sensação foi imediata: queria uma maravilha daquelas!
– Pai, mãe… compra pra mim! – pediu aos pais um daqueles assombrosos instrumentos mágicos, e qual não foi a sua surpresa quando eles disseram que naquele dia não estavam ali para comprar nada.
– Não?!
Chocado diante de tal negação, iniciou uma pequena birra, mas como nada parecia mudar, trocou agilmente de tática e partiu para uma grande birra. Seus pais continuaram inflexíveis.
Mudou novamente de estratégia e desta vez ameaçou chorar; fez uma careta e cruzou os braços. Em seguida deixou cair os braços em demonstração de tristeza e implorou, mas, ainda assim, a reação deles continuou sendo negativa. Solução final, recorrer ao tribunal máximo: esperneou, ameaçou, fez chantagem, gritou e chorou, mas a única coisa que conseguiu arrancar do jovem casal foi o prazer que eles ainda tinham em continuar aquela tarde no parque.
– Assim não dá mais! Não vamos comprar nada! É hora de partir – disse o seu pai.
– Vamos embora, está na hora, chega! – anuiu a sua mãe.
Assim, Alexandre deixou para trás o seu maior “sonho de consumo” até aquele momento. Abandonou, pela primeira vez na vida, um pedaço do seu coração. Teve então que começar a aprender a viver sem aquilo que mais queria, até que aos poucos o brinquedo começou a desaparecer do seu campo de visão, junto das bolas de sabão. Ficou selada, enfim, a sua primeira grande castração.
Duas semanas depois, Alexandre e seus pais estavam na casa dos avós. Como as aulas do seu irmão recomeçaram duas semanas mais cedo do que as suas, só ele ainda podia acompanhá-los para todos os lados. Era uma sexta-feira e os avós preparavam-se para uma viagem de dez dias ao sul de Minas Gerais, a terra natal deles.
Ao verem Alexandre, uma ideia surgiu e foi proposta pelo casal: queriam levar o netinho querido para passar esta semana com eles, já que, afinal lá, ele teria primos e primas com quem brincar. Sabiam que ele não era de causar problemas e a sua companhia muito os agradava.
“Partir sem meus pais?” – Alexandre sentiu dúvida e medo diante do desconhecido. Nunca se afastara conscientemente deles, nem alguma vez tinha imaginado esta possibilidade.
Talvez o melhor fosse não ir pois não sabia se poderia sobreviver sem eles. Mas depois achou que talvez fosse possível e que seria até bom, ao imaginar os primos que poderia rever. O correto contudo era não arriscar, para, enfim concluir: por que ele não deveria ir para um lugar onde, com certeza passaria bons momentos? Eram as certezas e dúvidas numa cabeça de oito anos.
Seus pais não estavam seguros com essa ideia e começaram também a se sentir desconfortáveis com a sugestão do filho ficar longe. Apesar disso resolveram deixar as coisas andarem para ver até onde iam, pois afinal, não são só os filhos dependentes dos pais, também estes últimos, dependem dos filhos. Principalmente os que depositam nos rebentos o objetivo maior das suas próprias vidas. Para estes, quando os filhos deixam de estar lá, quando adultos, é o momento de encararem o que passaram uma vida inteira a adiar: que a vida deles não é a vida dos pequenos.
– Ei, agora segurem as pontas aí e arranjem um significado para a vossa própria vida!
Lentamente, Alexandre começou a aceitar o convite, apesar de nunca ter deixado de olhar para os seus pais como quem tentasse arrancar da visão que tinha deles a resposta certa de como deveria agir em cada instante. Seu pai, ao ver porém que estava perdendo terreno, resolveu sair da inércia e, numa tentativa de influenciar aquela decisão que parecia ser a final, tentou-o:
– Meu filho, fica aí! Fica aí que a gente vai ao Aterro neste fim-de-semana e eu compro aquele brinquedo que você tanto queria no outro dia, aquele que fazia bolas de sabão.
Assim era covardia…
“Puxa!” – Brilharam os olhos do menino. – “Aquele brinquedo…”
Podia já imaginá-lo nas suas mãos. Dezenas, centenas, talvez milhares… de bolas de sabão, a voarem livres, intermináveis, belas… Aquele brinquedo poderia ser finalmente seu.
– Então, meu filho, fica?
– Não, pai… deixe pra lá – disse o pequeno Alexandre sem deixar transparecer a maturidade que sentiu por sua escolha. – Eu vou mesmo com eles.
Agora ele tinha certeza.